Por Gilvanni de Amorim

Conheci Orlando Geraldo Rego de Carvalho lá pelos anos 1980, quando éramos funcionários do Banco do Brasil, em Teresina. Ele, em final de carreira e eu, com pouco tempo de batente na empresa. Já tinha lido seus romances “Ulisses entre o amor e a morte”, “Rio subterrâneo” e “Somos todos inocentes”.

Algum tempo depois, leria “Como e por que me fiz escritor”, depoimento do autor, fundamental para a compreensão de sua obra, e a novela “Amarga solidão”, raridades desconhecidas do grande público, que guardo com carinho na minha biblioteca.

Eu participava ativamente do movimento sindical e, com frequência, visitava unidades bancárias para distribuir jornais e panfletos aos bancários. Fazendo esse trabalho, conheci O. G. Rego na Agência Teresina, onde ele dava expediente, na Rua Álvaro Mendes, no centro da cidade.

Logo mais, ele se aposentaria. Mas, mesmo aposentado, manteve por alguns anos o hábito de ir quase diariamente, pela manhã, à agência, talvez por apego aos colegas que ainda por lá permaneciam.

Minhas conversas com O. G. eram breves e geralmente se resumiam a assuntos políticos e econômicos da classe bancária, ele sentado atrás do “bureau” e eu em pé.

O. G. era amável e me tratava cordialmente. Havia dias, porém, em que o encontrava alterado, diferente. Eu já sabia, e apenas entregava-lhe o jornal e seguia em frente com meu serviço de panfletagem.

Um dia, além dos panfletos, carregava comigo o tabloide Folhetim, suplemento de cultura da Folha de São Paulo, que eu lia regularmente toda semana. A edição trazia uma longa reportagem de páginas, como era próprio do Folhetim, sobre mulheres queimadas pela Inquisição por praticarem bruxaria. A capa, em preto e branco, exibia a imagem clássica de uma bruxa nua voando escanchada num cabo de vassoura.

Cheguei ao “bureau” de O. G. e mostrei-lhe a capa do Folhetim. Ele, vendo aquela cena de mulher nua escanchada num pau, pensou que fosse pornografia, e virou o rosto em desaprovação. Logo expliquei que era apenas uma matéria sobre mulheres condenadas por heresia e imoladas pelo Tribunal da Santa Inquisição da Igreja Católica. Ele pegou o tabloide e começou a folheá-lo com reflexivo interesse. Após isso, falou um pouco dessa tragédia que aconteceu na Idade Média e Idade Moderna.

Em setembro de 1989, em plena campanha para a Presidência da República, revelei a O. G. que ia votar em Lula. Ele me disse que não se decidira ainda. Então, pela primeira vez, lhe falei:

– Gosto muito de política, mas minha paixão é literatura.

Disse também que gostava de escrever. O escritor me olhou com indisfarçável surpresa. Continuei:

– Já li seus três romances. Tenho a edição de “Rio subterrâneo” da Editora Civilização Brasileira.

O escritor me olhava de um jeito como nunca me tinha olhado assim antes. Vi através da sua aura que uma luzinha se acendera no seu cérebro.

O. G. então me passou seu endereço, para eu ir à casa dele, que lá me daria de presente a nova edição de “Rio subterrâneo”. Marcou o dia e a hora da visita.

Saí dali exultante e passei os dias seguintes, até chegar o momento da visita, em enorme expectativa.

Dia e hora combinados, me dirigi à casa do escritor, à tardinha, na Rua 13 de maio, perto da Av. Campos Sales, zona Norte. Levava comigo a edição da Civilização Brasileira para ele assinar.

Abri o portãozinho, atravessei o jardim e cheguei à saleta onde ficava a porta de entrada da casa, duas janelinhas recortadas por finas barras de ferro se abriam no meio da porta. Através delas, divisei a sala de estar, a decoração sóbria com cadeiras de madeira escura. Um silêncio de fim de tarde, de quase penumbra, pairava dentro da sala; um silêncio de casas antigas e tempos longínquos da minha infância, onde tudo é memória.

Não me lembro se bati palmas ou apertei a campainha. Demorou para O. G. aparecer, até que ouvi passos se aproximarem, e o rosto do escritor se enquadrou no vão das janelinhas. Ele abriu a porta e com um leve sorriso me convidou a entrar.

Depois de indicar uma cadeira, pediu-me para esperar e saiu pelo corredor que dava aos quartos. Demorou mais um pouco e retornou com o livro e uma caneta. Sentou-se ao meu lado, abriu o livro e escreveu uma singela e curta dedicatória, letra miúda de quem, parece, não querer se mostrar. Fez isso também no livro que eu trouxera.

Eu tinha levado para lhe dar, como retribuição à sua gentileza, um poema de minha lavra datilografado em laudas de papel A4. Na hora de lhe entregar, hesitei se valeria fazer dedicatória em produção tão escassa de apenas um poeminha. O. G. percebeu minha dúvida e interveio elucidativo: “Não carece de fazer oferecimento, basta apor sua assinatura”. E assim fiz.

Passamos mais um quarto de hora conversando. Me levantei para sair e O.G. me acompanhou até a saleta. Quando ia me despedir, ele parou e disse:

– Já decidi em quem votar.

Fez uma pausa e concluiu:

– Vou votar no Brizola.

– É um bom candidato, eu disse. Tomara que ganhe Lula ou ele.

Me despedi com um aperto de mão. Passei o jardim, abri o portãozinho e ganhei a calçada. Senti no rosto o bafejo quente da tarde, o suor em vertigens tomando o corpo. Mas ia feliz carregando meu valioso presente.

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