O tema é secular, mas as últimas três décadas evidenciaram um aumento significativo de publicações e debates indagando o que nos singulariza como seres humanos e como são construídas as nossas subjetividades. O neurologista António Damásio assegura que tudo começa com o movimento do corpo e o fluxo de sentimentos. É a partir daí que emergem a consciência, a cultura e os sentidos da vida. 

Filósofos políticos e cientistas sociais costumam seguir caminhos um pouco diferentes, propondo uma espécie de lógica reversa. Ou seja: ao refletir sobre a construção das subjetividades, acabam indagando o que acontece quando as pessoas perdem o seu estatuto de pessoa e passam a ser consideradas objetos. Os motivos que promovem esta passagem do “vivo” para a “coisa” estão descaradamente relacionados a algum tipo de interesse comercial (e político) – ora voltado à erotização ou exotização do outro, ora emperrado em estruturas coloniais que levam à exclusão deliberada das “vidas improdutivas” que por não se adequarem aos padrões sociais heteronormativos (e brancos), nada valem. 

Se o papel dos intelectuais e dos escritores mostra-se cada vez mais relevante nestas discussões, o mesmo não acontece com os performers. No senso comum, costuma-se considerar que estes artistas da cena são muito habilidosos para ilustrar e representar temas, mas incapazes de propor reflexões. 

A Invenção da Maldade | Foto: Maurício Pokemon

Quando estive recentemente em Teresina e assisti ao espetáculo A Invenção da Maldade, concebido pelo coreógrafo Marcelo Evelin, encontrei um bom exemplo de como a arte pode, sim, criar caminhos que vão muito além dos clichês da arte-entretenimento, lidando com aquilo que a experiência e a pesquisa têm de mais precioso: a imprevisibilidade e o risco. A diferença é que não se apresenta uma narrativa verbalizada, e sim, um laboratório de percepções corporais. 

Há uma diferença entre os experimentos que ambicionam chegar a um resultado ou produto, e as experiências que se alimentam de perguntas e incertezas. Neste caso, o que mais importa é algo que se dá a ver (no corpo) quando o movimento aciona uma possibilidade outra de ali estar. 

Em A Invenção da Maldade, esta outridade é a coragem para enfrentar e se abrir à diferença. Neste sentido, tem tudo a ver com as pesquisas filosóficas que discutem a constituição de subjetividades e o seu esvaziamento nos corpos-zumbis que vivem à deriva. 

Em A Invenção da Maldade, concebido pelo coreógrafo Marcelo Evelin, encontrei um bom exemplo de como a arte pode, sim, criar caminhos que vão muito além dos clichês da arte-entretenimento, lidando com aquilo que a experiência e a pesquisa têm de mais precioso: a imprevisibilidade e o risco.

Mais do que um espetáculo, instaura-se uma nova condição. Um estudo sobre a possibilidade da arte lidar com a humanização. Aquilo que se torna mais relevante deixa de ser a formação técnica dos dançarinos, a estrutura coreográfica, a virtuosidade do músico-artesão que inventa os próprios “instrumentos” e a presença da fogueira simbólica (embora tudo aconteça em torno dela). 

Não por acaso, as tentativas de construir narrativas fracassam sucessivamente e é aí que esta obra-acontecimento encontra a sua maior potência. Não há harmonia, equilíbrio, encaixes ou acordos. A tensão e as zonas de conflito são prementes, mesmo quando se tenta camuflá-las. Há um esforço para encontrar uns aos outros. Suor que, por vezes, arrisca se converter em lágrimas e tantas outras secreções expressivas do corpo. Há fronteiras invisíveis que se alimentam das diferentes nacionalidades dos dançarinos, mas não se restringem a elas. Corpos negros, brancos, femininos, masculinos, europeus, brasileiros, asiáticos. 

Mas nada, nem ninguém, está em seu devido lugar. Não há apego a procedências ou categorias. Nem as pessoas nem as coisas. Os sinos não são exatamente sinos embora os ventiladores os façam soar como tal, a fogueira não tem fogo, as madeiras não são apenas madeiras, mas instrumentos de percussão. Gente, bicho, sexo, abjeto, prazer e dor, muita dor. 

É uma mulher negra quem demarca o território. E do começo ao fim, a grande surpresa é perceber que assim despida – e sem nada a esconder – ela empunha o seu galho varinha espada e ao invés de inventar a maldade, faz florescer uma estranha generosidade que testemunha o momento em que deixou de ser apenas pele e superfície, revirando todos pelo avesso. 

Talvez A invenção da maldade seja, afinal, um manifesto sobre como a vulnerabilidade pode se transformar em potencia, confirmando a hipótese de Damásio – ali em cena tudo começa com movimento e sentimentos. 

Neste território, a marca da humanidade está além da aclamada “razão”, encontrando seu fundamento na aptidão para empatia, especialmente nas circunstâncias em que a abertura para a diferença se torna a principal arma para lidar com aquilo que o filósofo camaronês Achille Mbembe reconhece como políticas da inimizade e os perigos dos acirramentos identitários. 

Ao buscar nossos lugares de fala construímos nossas subjetividades e, ao mesmo tempo, somos construídos por seus nexos de sentido. Mas isto não pode implicar na extinção das diferenças. 

Em A invenção da maldade – assim como na vida – o que está em risco diante do desejo de aniquilação do outro, somos todos nós. 

Christine GreinerDoutora e mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC, São Paulo.

Publicado na Revestrés#41 – maio-junho de 2019.