No belíssimo texto Tropicalista Lenta Luta (2003), o cantor e compositor Tom Zé delineia aspectos de sua forma de fazer canção, mostrando como se impôs “limpar o campo, não usar o Corpo-cancional; plasmar a cantiga com outra matéria”. Com essa plataforma ele procurou “reformular todo o aparato teórico para um diferente objeto”. É assim que devemos compreender a volúpia estética de Tom Zé, a fuga do ‘corpo-canção’, tradicionalmente desenvolvido, e a tentativa constante de impor novas substâncias à canção. Uma regra imposta a si mesmo e que vem sendo cumprida ao longo de mais de cinquenta anos, desde a arrebatadora vitória em 1968 no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, com a canção São São Paulo, passando pela revolução musical da Tropicália e seguindo criando ao longo dos anos de 1970 numa carreira tipo Multiplicar-se Única, como ele mesmo intitulou uma de suas canções.  Nos anos de 1980 houve uma inexplicável ausência de Tom Zé no cenário musical, foi preciso a aferição externa do músico escocês/norte-americano David Byrne que, num acaso reparador, trouxe-o de volta à tona e mostrou ao Brasil e ao mundo quão inventiva é a produção do bardo baiano.

Tom Zé é assimétrico, o que ele propõe e faz com a canção é desarticulá-la de suas linhas e estruturas, compondo sob novos ângulos e planos sonoros. É uma plataforma que busca dissolver normas, trazendo a brutalidade para abrir o campo da experimentação, confrontar o sistema da arte. O avanço de Tom Zé é mais significativo ainda se pensarmos que sua atuação se iniciou dentro de um projeto considerado de vanguarda, pois a Tropicália já contempla muito do que se pode pensar como experimental.

O compositor de Irará chega agora aos oitenta anos, e ao contrário do que normalmente acontece nestas ocasiões, o momento do artista não é de retrospectiva, ele continua criando e experimentando. Lança o instigante álbum Canções Eróticas de Ninar, cuja temática em si já requer atenção, considerando os tempos sombrios de virada conservadora e moralista por que passa a direção política da República Federativa do Brasil.

O título provoca um estranhamento paradoxal, as canções são para embalar cópulas ou para dormir? A descoberta do sexo, as pulsões eróticas infantis, as diferenças com as meninas, o aprendizado erótico, os assuntos de sexo são tratados com tiradas brincalhonas e com inventivo cuidado. Percebe-se a preocupação de Tom Zé em falar de erotismo sem subalternizar a mulher gratuitamente, sem resvalar no machismo costumeiro. Versos como “Se foi um dia de tédio/ Receito um dedo médio/ Se ocorre até um chorinho/ Receito o dedo mindinho”, da canção Dedo, brincam com o ato masturbatório feminino, apresentando a mulher com autonomia erótica, fazendo suas próprias opções.

Muitas faixas carregam a dinâmica do ato sexual, as respirações da primeira música, Sexo, o crescendo orgasmático do refrão de Sobe ni mim, ou os “ois, uis e ais” de Por baixo. Arranjos e levadas tratam a paisagem sonora do CD como um ambiente de festa profana, estimulando o movimento, a dança, a mexida dos corpos, num quase rito do vai e vem erótico das alcovas.

O humor e certa safadeza gentil deslizam graciosamente pelas faixas: Descaração familiar, Urgência didática quando discorre sobre educação sexual; a prática de sexo por meio da busca de casas de massagem é relatada em Orgasmo terceirizado; as composições tratam dos mistérios em torno do sexo, da homossexualidade, da imagem da mulher em Por baixo, e No tempo que ainda havia moça feia. É um álbum conceitualmente de sexo, mas que foge do óbvio das baixezas mundanas e propõe um erotismo garboso.

O octogenário Tom Zé continua plasmando seu canto com outras substâncias, em formas sonoras híbridas. Neste Canções Eróticas de Ninar, a poética do erotismo vem embalada em soluções musicais de excitante criatividade e surpreendente alacridade. Evoé, meu velho Tom Zé.

*Feliciano Bezerra é mestre e doutor em Comunicação e Semiótica

(Publicado na Revestrés#28 – dezembro de 2016 / janeiro de 2017)