Paixão escorpiana. O “estado de alma” de o Destinador de Geleia Geral, automodalizado como um actante dotado de um dever fazer, um saber fazer e um não poder fazer, é sobremaneira dependente de um dever ser, querer ser, saber ser e poder ser. Torquato Neto falava a um Destinatário a quem imaginava emprestar competência cognitiva para poder fazer e querer fazer. E, sobretudo, falava a um Destinatário do qual esperava ação e, por que não, resposta em forma de sanção positiva.  

Contudo, essa sucessão de modalidades apresentou duas condicionantes que tornaram o percurso do Anjo extremamente tortuoso e torturante para ele mesmo. Em primeiro lugar, esse querer fazer, aliado a um percurso de convencimento e a um processo de mudança de comportamento ensejava, além da intensidade dos valores colocados em jogo, uma extensidade temporal. O Destinatário, em sua ação epistêmica, precisaria de tempo para processar o que lhe foi apresentado, comparando com aquilo que sabia (ou que lhe fora imposto anteriormente) e com suas crenças. Com efeito, a esperada sanção (cognitiva), nada mais seria do que o reconhecimento por parte do Destinatário de uma mudança de estado ocasionada pela assunção do programa de ação proposto em Geléia Geral. Contudo, fidúcia demanda tempo. Mas para o Destinador e para Geléia Geral, movidos pela dimensão patêmica, esse prazo de espera era notadamente insuportável.   

Em segundo lugar, a incompatibilidade entre alguns dos predicativos do Torquato, o tornaria mais suscetível aos arroubos passionais. A fruição orientada de gostos, por exemplo, orientada na Geléia Geral como um dever ser, precisaria, necessariamente, ser acompanhada de um poder fazer. O que a história mostrou, não foi possível. Se o querer e o dever determinam um sujeito narrativo “virtualizado”, e o saber e o poder, por sua vez, determinam um sujeito “atualizado” (capaz), seria preciso esperar o desenrolar performático para ver esse sujeito tornar-se “realizado” (materializado-reconhecido).    

O circunstancial histórico afetivo talvez tenha tornado infeliz o obstinado. Após desejar o que parecia impossível, permaneceu a desejar apesar de saber da impossibilidade evidente. O Destinador do discurso tornou-se (ou mostrou-se) um sujeito apaixonado, perturbando o seu dizer cognitivamente e pragmaticamente programado. E o Destinatário, que deveria desviar-se de sua própria racionalidade e de seus medos justificados pela repressão, a fim de entregar-se afetivamente ao dizer do Destinador, não teve tempo de digerir o dito.  

A incompatibilidade pode ser responsável pela diferenciação modal mínima que transforma um Destinador, antes obstinado, em um apaixonado desesperado. Assim, as modalidades regentes são o dever ser e o querer ser. Contudo, o não poder ser e o saber não ser, podem desembocar, decorrido certo espaço temporal num actante ainda mais insistente – “o obstinado” ou em um mais deprimido – “o desesperado”. Os dois configurados de acordo com as disposições internas do ser. 

Pareceu-nos que o Destinador de Geleia Geral comportava um par de dispositivos modais discordantes e desencadeadores de conflitos, nos quais coabitavam o querer / dever ser (autoimpostos) e o não poder ser, provocando rupturas internas que deixavam o sujeito “despedaçado”, tendente a uma aniquilação própria do ser construído. Apoiados na teoria Semiótica, de Greimas e Fontanille, compreendemos que: 

O desesperado dispõe, de certo modo, de duas identidades modais independentes, a do fracasso e da frustração, por um lado, e da confiança e expectativa, por outro; e a ruptura é um efeito de sua independência e de sua incompatibilidade. […] Sujeitos modais acham-se em conflito; mas, para o desesperado, o conflito é insolúvel e só pode chegar à aniquilação do ser, isto é, pelo menos a uma solução de continuidade no ser do sujeito.  

Voltando a Roland Barthes, entendemos esse percurso insuportável de ação e espera sob a ótica das paixões. Barthes trata a espera como a encenação de uma peça de teatro dividida em três atos, nesse sentido, podemos facilmente encontrar relações com o percurso do Destinador observado nos textos de Geleia Geral. O Ato I – passa por indagações a respeito da própria comunicação realizada. Teria sido ela feita da maneira correta, teria o Destinatário compreendido os significados transmitidos? Seria válido um reforço? Nesse momento, vimos o Destinador transmitindo os valores e reafirmando sua condição de “guia de cegos”, vistos nos textos Pessoal e Intransferível – Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. difícil é não correr com os versos debaixo do braço, E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar, e Cordiais Saudações – Ligue o rádio, ponha os discos, veja a paisagem, sinta o drama, “O pior de tudo é esperar apenas”. O Ato II – é o da cólera; pelo qual o Destinador dirige críticas (muitas vezes violentas) à conduta e à competência do Destinatário, como mostrado em Alô. Idiotas! – Estou de saco cheíssimo, amizade!, e o elepê do Chico, idiotas? Ainda não compraram? Está nas lojas e, se souberem ouvir, idiotas, compreenderão, e comprarão”. E por fim, o Ato III – no qual atinge-se a pura angústia, sensação de abandono, da ausência à morte (de si e do outro), e o Destinador deixa de investir na comunicação, abandonando a Geleia em março de 1972.  

Por tudo isso, não podemos mensurar, com segurança, se o gesto de insubordinação a gostos e bandeiras preconcebidas, de luta pela liberdade criativa, da marginalidade escolhida frente a um sistema repressor imposto teve a ressonância que merecia e o reconhecimento que desejava, com paixão e com muita pressa, o Destinador Torquato Neto. Talvez o seu maior legado nem esteja exatamente na forma passional, tantas vezes desesperada, outras tantas até autoritária, mas, certamente única, marginal, como encarou a empreitada de comunicar sonhos e valores indissociáveis de uma identidade ímpar. Sem dúvidas, concluímos, é preciso reverenciá-lo pela maneira radical com que se entregou à luta. E não esperou sentado, inocente, que um dilúvio apagasse o fogo que lhe consumia a alma. Mesmo que essa paixão levada às últimas consequências tenha lhe custado a própria vida e empurrado o Anjo Torto para a sua última viagem libertadora.  

Terá sido o gás ou a pressa que o levou?  

“FICO 

Tenho saudade como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegosDepois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. 

De modo  

Q 

FICO 

Sossegado por aqui mesmo enquanto dure”.  

Sobre a morte precoce do Destinador da Geleia Geral, o Destinador Parceiro, amigo e companheiro de composição mais constante, Gilberto Gil, em depoimento publicado no encarte do disco Um Poeta Desfolha a Bandeira e a Manhã Tropical se inicia, comenta: 

Eu realmente tenho a sensação de que Torquato não deu tempo pra gente. Com um pouquinho mais de tempo, acho que o circunstancial afetivo teria, de certa forma, se mobilizado beneficamente para ele. Desenrolaria o nó. Uma coisa que eu gostaria muito era ter conseguido amadurecer ao seu lado, muitas coisas que eram problemáticas e torturantes para ele, hoje já teriam ficado mais simples. Mas ele tinha pressa. Ligou o gás. (GIL, 1973).   

 

Lucas Falcão é Mestre em Comunicação e Semiótica / PUC-SP e Professor da Estácio Ceut/PI

(Publicado na Revestrés#33 – outubro-novembro de 2017, Edição Especial Torquato Neto).