Talvez o que tenhamos deixado passar despercebido quando Lyotard nos disse que havia chegado ao fim a época das grandes narrativas seja o fato de que, na verdade, vivemos em múltiplos tempos dentro de um “agora”: alguns vivem no século 21, outros no 20, outros não passaram do 19 e há quem diga que existem grupos que vivem, ainda hoje, no período medieval. E até anteriores.
Com isso nós, que nos acreditamos “de esquerda”, nos permitimos fragmentar ao máximo nossas agendas e nossa pauta reivindicatória. Claro, já que isso que chamamos de pós-modernidade contempla essa infinita multiplicidade de referências e até mesmo nenhuma, ao invés de um “norte” claro e objetivo. E nos dissolvemos em nossas subjetividades, tantas, incontáveis, superpostas em nós mesmos e em possibilidades sem fim. E aí o que há é não somos “a” esquerda, mas quase infinitas “esquerdas”, que muitas vezes tentamos impor às demais. E ainda tentamos nos posicionar em uma linha reta medindo quem está mais à esquerda que os demais, sendo que, usando uma geometria ideológica de possibilidades como modelo, talvez fosse melhor tentar nos localizar enquanto “esquerda” em um dos pontos de um megágono, tridimensional, maleável, permanentemente desconstruído e reconstruído.
Então estamos nesse megágono, que flutua e gira e não tem nenhum rigor de forma, e nossos opositores seguem com um discurso que tem como base aqueles três pontos que vêm, talvez, do século 17 e formam o esqueleto do conservadorismo: tradição, família e propriedade, que também pode ser lido como hierarquia, deus e capital. Mesmo que aqui e ali eles tenham suas incongruências, divergências e desvios, o esqueleto do conservadorismo, apesar de, sim, ser esqueleto pós-cadáver, segue sendo algum norte, uma estrutura. E os une.
Uma hora esse esqueleto iria sair dos armários mofados e se aproveitar da nossa multiplicidade, que ao mesmo tempo é nossa maior força e maior fragilidade, para tentar nos derrubar e se revigorar. Tendo por ponto básico a letra “t” do tripé, mundo afora esses zumbis tentam nos levar de volta ao passado, mal-estruturado e feio, porém pronto, ao invés de nos projetar para um futuro desconhecido, mas possível de ser construído sob novos paradigmas.
Zizek disse ali que nisso de pós-modernidade, onde especialmente nos agrupamos em torno de uma ideia fluida e múltipla de esquerda, tudo se tornou demasiadamente próximo, promíscuo, sem limites, e tudo que existe deixa-se penetrar por todos os poros e orifícios por tudo. Pode ser que ele esteja certo e que essa chamada promiscuidade, que poderia ser mesmo nossa grande oportunidade, se tornou nosso maior problema, já que a falta de limites e noção de narrativa hegemônica permite que o passado, o mofo e o retrocesso se mantenham vivos, com algum vigor, e a superposição de tempos vividos possibilita que tentem reassumir o comando de tudo usando uma nova grande narrativa: a narrativa do “não há nada melhor que isso”, ancorada em nossa desesperança e na hierarquia social da tradição, no estruturalismo moral da família regida por um ser divino, e na propriedade, na acumulação, na capacidade adaptativa do capital. Uma narrativa que muitos de nós pensávamos estar em superação, mas que está aí, alimentada pelo velho medo que sempre foi usado como estratégia para calar vozes dissonantes, amansar corpos indóceis e matar esperanças revolucionárias.
Talvez precisemos também de uma nova grande narrativa como contraponto. Urgentemente. Mas qual?
* André Gonçalves é publicitário, fotógrafo e escritor
(Publicado na edição#26, agosto/setembro de 2016)