A despeito dos 30 anos de vigência da Constituição de 88, vivemos atualmente no Brasil um momento que poderíamos rotular de “pós-democrático”. A expressão “pós-democracia” foi cunhada pelo cientista político inglês Colin Croug, e designa um momento de ruptura com o Estado Democrático de Direito. Implica, portanto, num sério comprometimento de valores próprios da democracia e do Estado de Direito. Segundo Rubens Casara, esse estado de coisas decorre, em última análise, de uma transferência do poder real. Assim, embora ainda se mantenha um simulacro de democracia e de Estado de Direito, com eleições periódicas, imprensa livre e funcionamento regular das instituições estatais, as decisões políticas passam a ser tomadas por grandes forças econômicas internacionais e seus sócios nacionais. Estes, aliados a setores hegemônicos da mídia, também exercem forte pressão sobre o sistema de justiça, especialmente sobre o sistema de justiça criminal, aproveitando-se das legítimas reivindicações sociais de combate à corrupção. 

Assim, para atender às pressões dos detentores do poder econômico e do seu braço político e midiático, intensificou-se o “estado de exceção” no qual nos acostumamos a viver sem nos darmos conta, atentando-se contra os direitos fundamentais da educação e da saúde, contra direitos trabalhistas, contra os sistemas de proteção social, contra princípios de justiça tributária, contra uma repartição mais justa dos orçamentos públicos, contra o meio ambiente, contra populações indígenas e contra os espaços de pensamento crítico que denunciam estas mazelas, especialmente a classe artística, as universidades e o jornalismo comprometido com a verdade.  

Em períodos de anormalidade como o que vivemos atualmente, as instituições penais costumam ser utilizadas, sob o pretexto de combate à corrupção, com funcionalidade claramente política.

Uma ruptura, ou, pelo menos, uma suspensão seletiva, ocorre também em relação às garantias clássicas do Estado de Direito no regramento do poder penal do Estado. Para atender um ultraliberalismo abertamente assumido sem maiores pudores a partir da ascensão de Michel Temer e Jair Bolsonaro, o Estado passa a desempenhar um papel cada vez mais forte no campo do controle social e da repressão das condutas indesejadas, assumindo feições de um verdadeiro “Estado de Polícia”. As engrenagens oficiais do sistema punitivo, integrado principalmente pela Polícia Federal, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, que se apresentam como mais importantes manifestações da força do Estado, em momentos de normalidade democrática atuam, a partir da observância das regras constitucionais e legais, como espaços de racionalização do poder punitivo do Estado, buscando minimizar os danos produzidos por quem viola a lei penal, como também aqueles ocasionados pela própria aplicação da lei penal. 

Isso porque, nesta seara, as garantias do Estado Democrático de Direito têm em mira limitar os espaços de arbítrio e desvios no exercício do poder por parte dos atores do sistema punitivo. Essas garantias atuam como instrumentos de contenção dos poderes excessos do sistema de justiça criminal.  Assim, ser julgado por um juiz imparcial sempre foi tido como um pilar fundamental do Estado de Direito, como uma garantia inafastável do devido processo legal, aliada às garantias do contraditório, da ampla defesa e do juiz natural. 

Contudo, em períodos de anormalidade como o que vivemos atualmente, as instituições penais costumam ser utilizadas, sob o pretexto de combate à corrupção, com funcionalidade claramente política. O que restou de aparência de democracia se constitui agora apenas num álibi às ações necessárias à repressão dos indesejados no campo social e político. Mantidos os ritos oficiais do Estado de Direito, desencadeia-se uma politização progressiva de setores do sistema de justiça penal, com a utilização do direito e do processo penal de forma seletiva como instrumento de intimidação e perseguição daqueles que são considerados “inimigos”, escolhidos segundo a diferenciação amigo-inimigo apregoada por Carl Schmidt em 1932. Esta triagem amigo-inimigo ocorre segundo uma lógica marcada pela intensidade da adesão, ou não, à razão neoliberal imperante na sociedade e nos mercados. Esta politização do sistema de justiça criminal tem ficado patente, nos últimos tempos, na chamada Operação Lava-a-Jato, conforme tem revelado o site The Intercept, o jornal Folha de São Paulo e a Revista Veja. 

Pressionado por esta lógica, e como revelam diversas experiências em países de tradição autoritária, o sistema penal tende a se tornar um verdadeiro laboratório para testes de aceitação de medidas de exceção, contrárias às conquistas civilizatórias do Estado de Direito. Pouco a pouco, esse funcionamento pervertido do sistema de persecução penal passará a ser considerado com ares de “normalidade” por muitos, inclusive por certas instituições judiciais de controle, como Supremo Tribunal Federal, encarregado em última instância pela salvaguarda das conquistas civilizatórias do Estado de Direito. 

Robertônio Pessoa é mestre em Direito do Trabalho e Doutor em Direito Administrativo. É Professor do Programa de Mestrado em Direito da UFPI e procurador da Fazenda Nacional. Membro da Academia Piauiense de Letras Jurídicas e autor dos livros Sindicalismo no setor público, Direito Administrativo e Administração e Regulação. 

Publicado na Revestrés#42 – Julho-Agosto de 2019.

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