“A desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta
com a valorização do mundo das coisas.”
Karl Marx
Diário da quarentena, trinta e tantos dias de isolamento social. Esse ano devia ser de comemoração já que vou conseguir meu diploma universitário, e mais: vou completar 25 anos de idade. Sabem o que isso significa? Homem negro, morador de comunidade fruto de ocupação urbana, passando dos 24 anos, não é apenas superar mais 365 dias, é superar estatísticas não muito agradáveis.
O meu corpo está em isolamento. Eu consegui, mas a minha mente está longe. Ela está com a minha vizinhança que não conseguiu parar e, se parou, está tendo que lidar com diversas incertezas e uma casa lotada de gente.
A cidade é dividida, fala sério, tu sabe. As pessoas de onde eu venho têm um destino mais ou menos traçado: elas têm que trabalhar. Somos nós que fazemos as cidade acontecer. Como seria Teresina sem o cara aqui da rua do fundo que acorda de madrugada pra ir buscar o ônibus do transporte municipal na garagem? Como seria Teresina sem minha vizinha do lado que é técnica em enfermagem? Como seria Teresina sem o carinha que jogava bola comigo e hoje coleta lixo urbano? Não falo deles enquanto indivíduos, mas as pessoas que realmente trabalham nessa cidade, no sentido mais cansativo do termo, têm quase sempre um endereço certo, são dos bairros populares, da periferia, das favelas. Ah, e aqui não vou ter tempo pra falar da maioria, que não tem um emprego fixo, mas também é fundamental pra cidade.
O curioso é que nós fazemos acontecer, movimentamos a cidade, trabalhamos e é o trabalho que gera riqueza – mesmo não achando isso tão bonito assim, afinal não temos outra escolha desde cedo, não é? Temos que
trabalhar -, construímos prédios, cuidamos das pessoas, construímos coisas maravilhosas, construímos o progresso, mas a nossa humanidade parece ser descartável na mesma proporção em que o nosso vigor físico é necessário. Estudar? Duplamente difícil. Viajar? O que é isso, vai trabalhar, rapaz.
As pessoas do alto de seus apartamentos ou mansões dizem que devemos continuar construindo o progresso, não podemos parar, se pararmos será o fim do Mercado. Mas quem é esse Mercado? Ele já veio ajudar alguém aqui na Vila? Ele é de onde? Que eu saiba sempre foi nós por nós.
A minha única dúvida nesse momento de pandemia é se já fomos considerados realmente humanos, pra saber se estamos sendo desumanizados.
Chico Filho mora na Vila Palitolândia, estuda Filosofia na UFPI e é um dos criadores do grupo Perifala. @ochicofilho
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