Da breve passagem do escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini (1922 – 1975) pelo Brasil, restaram três poemas seus, incluídos em Transumanar e organizzar (1971). Um deles, Gerarchia (Hierarquia) apresenta a estada do italiano na cidade do Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Guiado por um rapaz pobre, espécie de Virgílio profano, o poeta caminha, culpado, atento, pelas vielas de uma favela “que fatalmente nos esperava”. Com a matéria miserável que tem diante de si, o poema traça uma Hierarquia incerta que justapõe, em uma mesma geografia, de um lado, “os velhos, a cuja categoria começo a pertencer”, “uns velhos intelectuais”, e, de outro, os garotos do povo. No topo desta Hierarquia, Pasolini encontra “a ambiguidade, o nó inextricável”, onde coabitam contrários, fascistas e subversivos, burgueses e subproletariados, em uma dialética singular e nada hegeliana. 

A ideia em Pasolini: retratações é re-tratar como um tratar de novo, um voltar àquilo que foi escrito e produzido com a lembrança viva de que uma obra nunca termina, mas está sempre sendo elaborada mais uma vez. 

Pensar em e com Pasolini sem desembaraçar os nós das ambiguidades, sem buscar encerrá-lo em qualquer coerência teleológica, prevista, é o convite feito por Davi Pessoa e Manoel Ricardo de Lima no livro Pasolini: retratações (7 Letras, 2019, 88 págs.). Nos seis ensaios, disparados a partir de seminários dedicados ao cineasta e realizados entre 2016 e 2018, os autores retomam o gesto de retratar, porém afastado de seu significado corrente e jurídico, conforme já nos alerta a epígrafe, de Giorgio Agamben. A ideia aqui é re-tratar como um tratar de novo, um voltar àquilo que foi escrito e produzido com a lembrança viva de que uma obra nunca termina, mas está sempre sendo escrita, reescrita, elaborada mais uma vez. 

No jogo da leitura crítica dos ensaios, entrevistas, poemas e filmes de Pasolini (ler, em sua raiz etimológica, legere, é sempre uma montagem de peças, de palavras, então, um jogo), abre-se uma constelação em que 1962, por exemplo, sobrevive em 2018, ou em que o fascismo sobrevive no capitalismo do pós pós-guerra: em que o passado sempre resta no presente. Davi, em Este romance não começa: anarquias, recupera a cena do diálogo entre o centauro e Jasão no filme Medeia, de 1969. Nela, o centauro da infância, sagrado, convive com o da vida adulta, profano, em uma relação não de dualismo, mas de continuidade, de justaposição. “A história do passado”, escreve Davi, “não é destruída, por mais que a própria história se mostre aos olhos dos obedientes como uma espécie de evolução, ou de superação contínua de dados, e não é destruída porque há sempre sobrevivências entre os escombros” (p. 11, grifos do autor). 

As sobrevivências anacrônicas são também, por que não, anatópicas. Pode-se, nessa constelação aberta, tocar a Itália ao atravessar o Brasil (“Brasil, minha terra, / terra de meus verdadeiros amigos”, se relermos Hierarquia) ou qualquer outra parte deste um mundo, tão amontoado de instrumentos, leis, instituições. O empenho ingênuo de Pasolini, perscrutado por Manoel nos ensaios É antes o fim de um mundo Um lugar ainda mudo, seria dar a volta nesse um mundo que entulhamos de invenções (estas, paradoxalmente, sem nenhuma potência inventiva), para criá-lo de outro modo: entre o que existe e o que não existe ainda (p. 49-50). Somente uma leitura de Marx como a que faz Pasolini, livre da relação determinista entre infra e superestruturas – e, portanto, acolhedora das disparidades e das incoerências – poderia desempenhar uma possibilidade de arte que apresentasse este ainda inexistente, este impossível, como realidade. 

O enfrentamento político e estético de Pasolini talvez seja o de instalar-se em uma oscilação. Enfrentamento, pois, este um mundo ainda é (como foi o de Pasolini) um mundo de normas (O monstro Userum, de Davi Pessoa), um mundo de formas (Pasolini continua respirando, de Manoel Ricardo de Lima). Bem o sabemos que há códigos de conduta para obedecer ao Poder, mas há também códigos de conduta para desobedecer a este Poder: colocar-se como aquele que não é nem obediente nem desobediente, tal qual o protagonista de Pocilga (1969), já é, em si, estar em risco. (Afirma Pasolini em entrevista a Jean Duflot, citada por Davi: “A sociedade atual esmaga seus filhos desobedientes, mas igualmente aqueles que se comprazem na ambiguidade”). 

Lançar o corpo ao risco do instável é a tarefa do poeta de Hierarquia que chega a uma cidade nova, do além-mar, “levado pela dúvida”, e que segue, até o fim, um garoto que conheceu ao acaso nas areias de Copacabana. É na tentativa de suspender as certezas enfáticas das frases feitas que se desenrolam os ensaios apresentados neste breve livro, que dispõe Pasolini em uma conversa com tantos pensadores díspares, de Lévinas a Belchior; de Herberto Helder a Walter Benjamin. Todos sobreviventes em uma mesma constelação capaz de tocar e diferir no presente. 

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Bruna Carolina Carvalho é Mestra em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e estudante de Letras pela mesma universidade. Jornalista pela Cásper Líbero, como repórter trabalhou nas redações do Terra, IG e Carta Capital. Foi também curadora da Casa do Saber Rio.

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