Ainda menina, fiz meus primeiros questionamentos acerca das agruras que acometem os corpos femininos e negros, talvez por ter experienciado algumas delas em meu próprio corpo. Mais tarde, entendi que neste mundo organizado e estruturado pelo capitalismo colonialista, marcadamente sexista e racista, esse é quase o estado ordinário das coisas, e são muitos os estudos que constatam o que vivenciamos na prática: sobre os corpos e as vidas das mulheres negras, o racismo, o sexismo e o classismo atuam de forma entrecruzada, resultando na violação sistemática desses corpos e dessas vidas.

Como sinalizou bell hooks (2020), a busca pelo entendimento da experiência consiste em um processo libertador, de recuperação da própria identidade e, sobretudo, de cura. Acredito que foi por isso que busquei exercer profissionalmente uma função que me permite manter contato direto e constante com o conhecimento; busquei a pós-graduação para aprofundar e elaborar ainda mais o conhecimento acessado; busquei a psicanálise para melhor entender e transformar o que sentia.  

Mas esse texto não é para falar da minha atuação profissional ou acadêmica, nem do meu processo na psicanálise. Este texto relata a percepção que tive, também muito cedo, da capacidade que nós, mulheres negras, temos de transcender e ressignificar a dor, movimentando e transformando, assim, a nossa própria realidade e a do mundo ao nosso redor.

Retorno ao ano 1996, quando tinha entre 11 anos e 12 anos, fazia a 6ª série e fui diagnosticada com uma escoliose leve causada pelo uso diário da mochila pesada no caminho até a escola. Era uma caminhada de mais ou menos 10 quarteirões, da Avenida Maranhão, onde parava o ônibus Bela Vista-Poty Velho, até a Rua Sete de Setembro, na Escola Santa Helena, onde estudei quase toda a minha vida escolar. 

Nada grave, o ortopedista recomendou apenas que eu fizesse natação para corrigir o desvio e passasse a usar um “carrinho” para carregar a mochila. Meus pais me matricularam na natação do CSU (Centro Social Urbano) do Parque Piauí, o mais barato e mais próximo de casa, e foi aí que me aproximei de Layany Mourão, minha melhor amiga da época, que hoje mora fora do país, mas seguimos em amizade e contato. E foi também quando conheci Valcirana Maia, nossa professora de natação, que se aproximou muito de Layany, e, como éramos melhores amigas, era inevitável que aquela proximidade reverberasse também em mim.  

Sem rodeios, Valcirana nos explicava que éramos negras, sim, que não existia raça “morena” (o que dizíamos ser) e falava para termos orgulho de nossa negritude, pois ela era sinônimo de força, de beleza, que ela jamais (não importava o que dissessem) nos diminuiria. Isso está marcado como um carimbo na minha memória. Ela também nos emprestava exemplares da Revista Raça, para que nos reconhecêssemos ali. Foi uma oportunidade incrível de acessar novos e diferentes conhecimentos, de desenvolver amor próprio, de ter uma percepção real e digna sobre mim e, sobretudo, de sentir acolhimento. 

Saímos da natação, mas lembro que ela e Layany continuaram próximas, de modo que a mãe de Layany convidou Valcirana para o aniversário surpresa de 15 anos dela. Depois disso – eu tinha 14 anos – só a encontrei novamente em 2003, quando tinha 18 anos, cursava Jornalismo na UFPI e estagiava em um programa transmitido na Rádio Pioneira de Teresina. Para minha surpresa, aquela professora de natação que nos apresentou tantas referências positivas de negritude, era também integrante de um coletivo de mulheres negras piauiense chamado Esperança Garcia, e seria uma das entrevistadas do programa. 

Naquela ocasião, ouvi Valcirana, e por meio dela conheci melhor Esperança Garcia, sobre quem tinha lido brevemente no Ensino Médio, numa disciplina de História do Piauí, em 2000 ou 2001. Ainda que o contato tenha sido breve, aquela história era relevante demais para passar despercebida. E, realmente, não passou. Hoje, graças à luta de pessoas como Valcirana, o dia 6 de setembro é, desde 1999, o Dia Estadual da Consciência Negra; Esperança Garcia foi reconhecida pela OAB como primeira mulher advogada; e seu nome designa um instituto, um memorial, outros coletivos, uma maternidade, auditórios, dentre tantas outras homenagens que eu não seria capaz aqui de mencionar ou localizar. 

Sem dúvida, Esperança foi uma mulher negra que marcou a história piauiense e brasileira. E Valcirana foi uma mulher negra que marcou a minha história, a de Layany e, possivelmente, de outras mulheres e meninas negras com quem se deparou. A última vez que a encontrei foi numa parada de ônibus da avenida Frei Serafim, em Teresina, talvez em 2006, 2007. Avessa a agulhas e afins, eu tinha acabado de sair de um exame médico incômodo, e, me vendo naquela situação, meio pálida, com a pressão ainda baixa, ficou comigo até eu melhorar. Se atrasou para o seu compromisso seguinte. Esperou o meu ônibus – que sempre demorava – passar. Agradeci, nos despedimos, e soube pouco tempo depois que ela havia falecido, aos 39 anos, de um jeito tão trivial… Uma queda, num hospital onde estava internada para fazer uma cirurgia relativamente simples, de apendicite. 

A passagem de Valcirana por este mundo foi rápida, mas também marcante, ao menos para mim. Sou grata por ter podido ouvir suas palavras, ler suas revistas, e, sobretudo, ter recebido aquele gesto de solidariedade, o último que nos conectou. Aquele gesto me fez entender em meu próprio corpo o que ela sempre dizia em palavras: muitas vieram antes de nós, lutaram, se ampararam, e é por isso que estamos aqui.

Valcirana me ensinou a nadar, mas arrisco dizer que, se não me ensinou a voar, ajudou-me a perceber que tinha asas… As asas que moram na minha capacidade de sonhar e realizar. As asas que me conduziram a voos que nunca imaginei alçar, mas que o fiz porque guardava e guardo em mim a certeza de que nada nem ninguém pode me subjugar. Valcirana deu as primeiras lições, mas demorei a aprender isso de fato, é verdade, e acredito que sigo aprendendo. Certos voos, contudo, tenho exercitado continuamente desde então: o de sentir, o de pensar e o de levar para a ação concreta os frutos desse sentipensar. Em um movimento ainda tímido, mas também concreto, busco colocar essas reflexões à disposição do mundo, seja em teoria e em texto, seja em palavra e em ação.  

É nesse contexto que escrevo e publico essas linhas. Além de deixar registrada a alma desse encontro que, sem dúvida, mudou o curso da minha vida e conectou-me a uma centelha interna que insiste em brilhar, em teimar, em esperançar, desejo que essas linhas inspirem outras mulheres a modificar a realidade a seu redor, ainda que com “pequenos” gestos. Certas ações parecem pequenas, mas podem impactar definitivamente uma vida, que irá impactar outras vidas, que irão transformar a realidade ao redor. A você, Valcirana, meu agradecimento. Você vive. Em Layany, em mim, e em quem mais nossa presença for um dia inspirar. 

***

Cecília Bizerra Sousa é graduada em Jornalismo pela UFPI, Mestra em Comunicação pela UnB e Doutoranda da Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, com pesquisa sobre mobilização de mulheres negras e indígenas no Brasil.

Publicado em Revestrés#50. 

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