“Antes do mar, da Terra, e céu que os cobre

não tinha mais que um rosto a Natureza:

este era o Caos, massa indigesta, rude,

e consistente só num peso inerte”.

 

Assim inicia as “Metamorfoses” de Ovídio, o mundo antes de Michelangelo.

Quando Michelangelo decide arrancar do mármore, matéria inerte, o gigante David, vemos o dilúvio do mundo anímico em sua forma mais pura: a alma está em tudo, basta a destreza de um artista em sintonia com o divino para trazer à tona instantes do Paraíso. Já na Capela Sistina, é como se Michelangelo tivesse pintado a si mesmo: Deus/Michelangelo toca Adão/humanidade, revelando-se ao mundo apenas para mostrar aos descendentes de Tântalo que a poesia transborda dos lábios de todas as coisas, mas que os homens continuam com sede.

Michelangelo é a prova máxima de quão grande o homem pode chegar a ser. Desesperado pela imortalidade – da mesma forma que Gilgamesh –, afirma que “cada segundo de descanso me leva ao esquecimento”. E eis o que o sacrifício desse homem monumental nos legou, fragmentos do Eterno no Tempo, e poderíamos acrescentar, o homem teme o tempo, mas o tempo teme as pirâmides e as pirâmides temem Michelangelo.

Mas o grande mestre florentino não foi o único a vislumbrar o Paraíso e revelar o eterno aos mortais. Nas letras, Dante praticamente se fundiu com suas palavras, suspendendo a poesia a alturas vertiginosas. Suas letras parecem ser capazes de transformar a matéria em decomposição num palco de supernovas, que por sua vez, transforma em belo tudo que toca, e onde até mesmo Medusa sentiria orgulho por sua face ao vislumbrar a beleza do poema.

E na música? Ah, Beethoven! Que injustiça comete este que escreve ao citar tão poucos seres iluminados, e ao fazer isso, o mundo se escurece: Beethoven fica surdo, Goya também; Borges perde a visão e Milton também; Wilde é preso e Dostoiévski também, mas no Brasil está tudo bem, não temos terremotos e nem tampouco Machado está ente nós para nos cortar com sua ironia ácida, ele agora vive em outras paragens, só ouvindo as histórias de Riobaldo no além.

Corremos de um lado para o outro, gritamos os nomes dos antigos mestres e ninguém responde, o nosso pedido de socorro é um agourento nevermore, só isso e nada mais. Vemos o mundo ao nosso redor e “nosso olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha1”, mas não aquele que sonha “uma alma que merecesse participar do universo2”, no entanto, uma alma de Narciso duplicada ad infinitum.

A frase “Laschiate ogni speranza, voi ch’ entrate”, pode ser traduzida da seguinte forma: bem-vindo ao século XXI. Otto Maria Carpeux, em prefácio a obra máxima de Dante, afirma que “a Divina Comédia (é a) autobiografia espiritual do poeta e (a) biografia permanente da existência humana”, ou seja, que a passagem do poeta pelo inferno, purgatório e paraíso é a vida de todo homem em busca da experiência divina de estar vivo, mas não mais no plano extrassensível (porque já não mais acredita), porém, na matéria putrefacta dos Anjos, devorada por vermes incansáveis e, cujo lirismo de suas vidas (dos homens), se resume a destruição. E por que isso? Porque perdemos a referência – nada de Virgílio para nos guiar pelos mundos do além ou de Michelangelo para arrancar da pedra a alma do poeta que se encontra aprisionado –, o barco de Caronte está lotado e nem mesmo no Hades podemos entrar. Nossa punição é catar a comida entre os detritos e engoli-la com voracidade, sem nem mesmo analisar previamente; nosso mundo está cheio de pantagruelismos, devorando tudo que encontra pela frente e, não satisfeito, ainda lambe os dedos, sem perceber que a qualquer momento esse excesso de detritos pode entrar em ebulição e levar pelos ares tudo de divino e belo que o homem já revelou à Terra. O relativismo de Einstein não é tão relativo assim, há algumas comidas que podem nos envenenar.

No livro “Beleza”, Roger Scruton, afirma: “Algumas obras mudaram a forma como vemos o mundo – o Fausto de Goethe, por exemplo; os últimos quartetos de Beethoven; Hamlet, de Shakespeare; a Eneida, de Virgílio e o Moisés de Michelangelo; os Salmos de Davi e o livro de Jó. Para aqueles que desconhecem essas obras, o mundo é um lugar diferente, quiçá até menos interessante”3. Como viver no mundo sem conhecer a face de Deus através das máscaras usadas pelas grandes obras? E como não conhecem a face de Deus através das grandes obras, usam as máscaras pelo avesso e com o avesso se reconhecem: os moinhos definitivamente são gigantes.

As grandes obras, a opus Dei humana, estão no mundo como faróis apontando para o infinito, ou como diz Octavio Paz, são pontes que nos levam para a outra margem4, para além do humano, para dentro do humano, para a mente de Deus; e assim a arte cria o artista e ele molda o universo e o expande como uma flecha em direção ao infinito, na esperança que atinja um novo Michelangelo, e esse por sua vez, tire da pedra a poesia que nos fará transcender da escuridão do cósmico segredo.

 

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras, Do cosmopolitismo das moneras… Pólipo de recônditas reentrâncias, Larva de caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias!”5

 

1 Tradução de Fernando Pessoa para o poema “The Raven”, de Edgar Allan Poe.

2 Jorge Luis Borges no conto “Ruínas Circulares”.

3 Roger Scruton no livro “Beleza”, pgs. 120 e 121.

4 Octavio Paz se refere à poesia, encontrado no livro “O arco e a Lira”.

5 Trecho do poema “Monólogo de uma sombra”, de Augusto dos Anjos.

 

*Vinicius Macêdo Barreto de Negreiros é mestre em estudos literários

(Artigo publicado na Revestrés#30 – Abril/Maio 2017)