Vivemos um tempo de fadiga e ameaças. De gritos, lamentos e choros abafados dentro de casa. Prantos escondidos debaixo do chuveiro. De caminhões com caixões desfilando pelas ruas na Itália, dezenas de covas abertas em Manaus, mais mortos nos Estados Unidos do que na guerra do Vietnã, tendas de hospital em estádios de futebol em São Paulo.
Um tempo em que, no Brasil, desacreditam médicos e cientistas. Defendem remédios não comprovados como a cura milagrosa. Em que grupos saem às ruas para zombarem das dores das famílias dos mortos para garantirem o direito de passear no shopping e comprar uma televisão em 10 prestações no cartão de crédito. É um tempo que tritura nossa experiência imediata em um turbilhão de emoções inconfessáveis por segundo.
Um tempo de fraturas expostas: uma democracia agonizante, golpeada por déspotas ignorantes, a ordem política quebrada, a economia moribunda. Adversários se tornaram inimigos. Um tempo de espera como aqueles minutos antes das ondas gigantescas do tsunami engolfarem a costa. Um tempo de cacofonias. Contamos milhares de experiências nas inúmeras telas, mas parece que ninguém ouve a dor solitária de quem perdeu seus direitos, de quem não encontra a mão do Estado no momento que mais precisa dele.
Um tempo de inimigos visíveis e invisíveis. Não é só o vírus SARS-COV-2 que nos ameaça. O perigo é maior do que um punhado minúsculo de proteína que se vai com água e sabão. O vírus coloca em xeque nossa existência física, e também nossos projetos de vida, nossa confiança nos outros. Desnuda a construção imaginária que chamamos de sociedade. O vírus revela pavores e sonhos coletivos. Expõe a falta de um projeto de nação. Estamos todos e todas nus de frente para o espelho. O país está nu perante o restante do mundo.
Um tempo de raivas, negação e luto. Onde está a vida que eu tinha? Por que não reabrem o comércio? O que deveriam ter feito e não fizeram? O que eu deveria fazer e não fiz? Por que não me deixam sair agora? Por que não posso ser mais quem eu era? O que fizeram com meu país? Mamãe, por que não posso ver meus amigos e amigas, pergunta minha filha.
Um tempo em que as janelas voltaram a ser os olhos das cidades, capturando o mais humano dos hábitos humanos. O café recém coado, o chá quente nas mãos da senhora, a moça cantando na janela, o homem que toca saxofone. Mas, ouvimos também a fúria, a briga, o tapa, o soco. O desgosto de se conviver com quem não se pode ver, com quem não se quer estar. Os porões da alma que se revelam por entre prédios, casas e ruas.
Quem nunca tinha tempo para ler, agora tem. Quem nunca tinha tempo para criar, agora tem. Quem nunca tinha tempo para aprender o que quisesse, sem se importar com produtividade e mensuração de competências, agora tem. Mas como ultrapassar as noites intranquilas? Como esquecer que os dias não garantem o sustento de quem precisa? Como anular o aperto no peito de quem
teme perder quem ama? Como criar um futuro pós-pandemia que não seja a versão piorada do passado recente?
O coração pulsa, pulsa, pulsa. Nas têmporas. Na garganta. Todo dia há despedida e recomeço. Canto enquanto escrevo. Canto porque descobri mais de dez tons de verde nas folhas das árvores. E insetos que nunca tinha visto. Minha filha inventou um poema. E me deu um abraço. Hoje a chuva fina sobre o gramado me lembrou um momento feliz.
Canto porque meu mundo é hoje/não existe amanhã pra mim/eu sou assim. A canção de Paulinho da Viola envolve meu corpo enquanto o vírus não vem.
O ar da noite é o estritamente necessário para continuar, e continuamos, escreveu Drummond em “O nosso tempo”. O tempo que nos cabe viver.
Liziane Guazina é mulher, mãe e pesquisadora da UnB, vivendo em Milão, Itália. Uma equilibrista em tempos de emergência sanitária e crises políticas. @liziane_guazina
A cada terça e sexta um novo texto nessa nova seção. Acompanhe.