Numa carta de 11 de novembro de 1968 para artista visual Lygia Clark, naquele momento em Londres, Hélio Oiticica apresenta um jovem e amado amigo a ela, Torquato Neto, então com 24 anos, e diz  do quanto esse moço é impressionantemente livre, à deriva, severo e estudioso e que vem fazendo uns poemas em que palavras e sinais se desintegram; depois anota: “Uma coisa engraçada: Torquato gosta, em geral, de coisas que ninguém gosta”. E em abril de 1973, numa temporada em New York, Torquato já morto [10 de novembro de 1972, aos 28 anos], Hélio volta a escrever acerca do quanto a força e a fúria, esses elementos que engendram um estado desintegrado da língua e do pensamento de Torquato, são um projétil em direção a nada, por isso, certamente, lembra de Antonin Artaud: “cura = veneno”. Ainda mais quando há uma discussão inócua de que a literatura pode se lançar a uma facilidade rasa e simplória, galvanizada, de cura. Importante lembrar que Gilles Deleuze – que também se matou, e aos 70 anos, num sem saídas da somatização que venceu a guerra do século 20 em torno de uma ideia de “acesso” –, já falara na radicalidade de uma saúde, mas nunca de uma cura.  

Adiante, Hélio, nesse mesmo datiloscrito, lembra que Torquato “não era digno da mesa nem dos ‘malditos’ da nossa paupérrima ‘casa grande’, ?????, uma espécie de MIDNIGHT RAMBLER atrás da porta e do conforto desconfortável do contentismo suado”. Atravessar esses não-sentidos é, sempre, retirar ou, no mínimo, deslocar e descolar Torquato de uma leitura primária que o conforma apenas numa certa memória fixa de geração, anos 1970, ditadura militar, tropicalismos etc. Importante, talvez, muito mais, agora, perceber também os desvios oscilantes e, se devagar, reparar, pelo menos nessas indicações que fez. Cabe imaginar, ainda, que “experimentar o experimental”, proposto por esses sujeitos-ar-rarefeito da cultura brasileira, tem a ver com o desconhecido, um modo a uma ultravida ou a um além-mundo, mas aqui, no único mundo que criamos.  

Foto | Acervo Torquato Neto (Teresina-PI)

Um imprevisto heterogêneo e singular que vai desde vestir-se de Nosferato num filme de Ivan Cardoso [Nosferato no Brasil, 1971], por exemplo, ou optar por uma fotografia do rosto de Jean-Luc Godard – com a legenda “Poeta. Nunca teve medo de quebrar a cara.” – , quando reclama, em sua coluna Geleia Geral, 14 de setembro, 1971, terça-feira, intitulada Pessoal Intransferível, uma tarefa política para o poeta: “é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela”. Depois, ainda anota: “quem não se arrisca não pode berrar” e esta circunstância desdobrada acerca daquele que teme lançar-se e grita de horror: é sempre o homem mesmo se for um boi. Poeta, para Torquato, é Godard, o cineasta francês que jamais aboliu a convulsão da luta de classes ao perceber que, muito mais, numa opressão da história, estamos diante da luta das imagens e com as imagens: recuperar, retratar e restituir exatamente quando a linguagem se inclina a fingir-se de morta imitando um inseto. Godard sempre reage: “faz filmes como quem não tem nada a perder”, disse dele François Truffaut.  

O que se pode apreender de Torquato Neto escorre do Piauí até uma anulação de uma ideia de centro e, assim, de poder.

Tudo o que foi pensado e escrito por Torquato vai num sentido sem direção, um desalinhavo, no mínimo, mas muito mais, como ele mesmo indicara, ou Hélio, para uma desintegração. E isto tem a ver com o desanuvio do corpo que desbarata o malogro, logo, de antemão, de qualquer princípio construído para um consumo institucional. A atenção também se abisma naquilo que o pensamento de um andarilho como ele consegue revirar e se arremessa à potência de enfrentamento, principalmente, do “atual”, como o que atua e promete, ou seja, como uma coragem para tocar um tempo em que aquilo que é a história e todos os seus entornos e litorais não têm mais esperança alguma. Assim, é irrelevante ler-se qualquer coisa sem a aderência de toda a empiria que a palavra testemunha quando se modula politicamente opondo-se às formas de dominação do instituído, ainda mais se o que se vai ler é um poeta como Torquato Neto. O que há é a urgência do pensamento que expandiu e do quanto ela exige, ato gratuito, um gesto para acolher um outro como outro – “Minha amiga mais bonita é meu irmão” –, tal como Jacques Derrida sugere em carta a alguns escritores palestinos: “Começar, re-começar (recomecemos), é arriscado, às vezes impossível, sabemos, por dizer ‘nós’. O mais justamente, o menos injustamente possível. […] Nós achamos que é nesse limite, nesse lugar de esgotamento, que é possível começar a recomeçar. E esse limite é o dentro ou o fundo do coração. Daquilo que decidimos chamar de novo coração, para invocá-lo. Aí o nós ultrapassa a razão e ganha imediatamente o coração, é lá que ele fala sem diplomacia ao coração, do coração, de coração a coração, a razão do coração, sua razão política. Nós estamos seguros disso: o coração, que não quer dizer outra coisa, está do lado da vida.” 

É aí que mora e demora, e se demora, uma das proposições mais viscerais de Torquato Neto, quando escreve em 15 de setembro, 1971, na sua coluna, a ideia de “por a boca no mundo” que se engendra e gira em torno da figuração de um “qual-quer”, um “tudo é perigoso” porque “assim não é possível”. Há um cansaço ou, muito mais, um esgotamento, que tem a ver certamente com o imponderável da perda de toda vinculação entre corpo e pensamento, pensamento e corpo; perda que é também produzida por uma sociedade sem brechas, e aí sim, encurtada pela eficácia violenta da ditadura militar, mas não só, porque há ainda e fatalmente a eficácia mais abrangente e violenta do capitalismo de chumbo. Contra isso a reação furiosa é a da imaginação como um perigo, “o poeta perigoso” de Dante Alighieri, que pode desmontar e desfazer a assimilação em estado de truque financeiro de que a liberdade, a inteligência, a alegria, a juventude, o estudo etc. são conveniências a uma sobrevida. No poema Literato Cantabile, ele escreve: “agora não se fala mais / toda palavra guarda uma cilada / e qualquer gesto é o fim / do seu início / agora não se fala nada / e tudo é transparente em cada forma / qualquer palavra é um gesto / e em minha orla / os pássaros de sempre cantam assim, / do precipício: // a guerra acabou / quem perdeu agradeça / a quem ganhou. / não se fala. não é permitido / mudar de ideia. é proibido. / não se permite nunca mais olhares / tensões de cismas crises e outros tempos / está vetado qualquer movimento / do corpo ou onde quer que alhures. / toda palavra envolve o precipício / e os literatos foram todos para o hospício / e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca. / agora não se fala nada, sim. fim. a guerra / acabou / e quem perdeu agradeça a quem ganhou.” 

 O gesto que se estende, faca só lâmina, da mesma guerra de sempre e que se pode apreender de Torquato Neto, escorre do Piauí até uma anulação de uma ideia de centro e, assim, de poder. Quando, por exemplo, curvado, alguém agradece a visita do vento que vem do sudeste para retirar o pó de um suposto desamparo, sem memória ou lembrança, numa espécie de fome, porque é pobre e mora longe num Piauí desmilinguido, basta reparar-se em Torquato, lição por sua vez apreendida de Drummond, “melancólico / e vertical”, impondo-se com toda a força furiosa do corpo e do pensamento para dizer que é um contra movimento ao mapa, ou às avessas ou apagado por completo, que se pode rearmar e rasgar o desenho, um Torres García mais severo e mais perto do infraleve de Marcel Duchamp e as máquinas celibatárias.  

Ora, é olhar ao lado, porque longe mesmo é o muro sudestino que é quase sempre preconceituoso e bélico, um protofascismo lânguido, em direção aos gabirus que todos poderíamos ser. De fato, cagam e andam a qual-quer que deste nordeste venha e não lhes aceite pedir a benção ou lamber as botas, dar a volta em suas cabeças como moscas famintas. Se ao lado e mais perto, repare-se no trabalho imparável, por exemplo [pra ficar apenas nos cindo dedos de uma mão esquerda e jovem, como esse Torquato sempre aos 28 anos], de Adriano Lobão Aragão, Demetrios Galvão, Laís Romero, Renata Flávia e Thiago E. E repare-se na revista Acrobata ou nesta Revestrés e no trabalho de seus editores e sei lá quantas outras pessoas, pensamento, esforço e tantos pequenos gestos de desintegração e fúria. Fácil lembrar de duas mínimas linhas implacáveis de Renata Flávia, uma poeta das mais interessantes e com imensa proposição política em tudo o que toca: “em estado de guerra, eu abraço!” e “punhal cego que sai cortando a porradas. assim se arrancam falsas promessas”.   

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Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou Pasolini: retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa), Avião de Alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015), entre outros. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios (Lumme Editor).

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Publicado na Revestrés#50. 

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