“Meu coração é um pedaço de papel”. Extraído de um poema de Torquato Neto, este verso dá pistas sobre como o poeta enxerga suas relações com o fazer artístico e o próprio estar no mundo. O coração aparece metaforizado em pedaço de papel, como superfície pronta para receber a ação da escrita, numa curiosa analogia que une a pulsão de existir ao próprio ato de escrever. E este “pedaço”, além de conter algo de fragilidade, remete também à descontinuidade, a algum tipo de incompletude, seja do ser ou do fazer.

 

 

Diante de um mundo cada vez mais aterrador, tornar-se consciente de seu desacordo em relação a esse mesmo mundo e fazer da arte testemunho único de sua subjetividade é um desafio para o artista. A criação torna-se um território possível de continuidade (muitas vezes não alcançada) da própria existência. A individualidade necessária rivaliza com a ordem social, que se caracteriza pela normatização de valores a serem seguidos, gerando então conflitos para o poeta, que se torna um indivíduo inadaptado, um coração despedaçado. 

O verso acima de Torquato, e muito de sua obra, nos faz lembrar as anotações impetuosas de Charles Baudelaire (1821-1867) no livro Meu Coração Desnudado. O poeta francês foi quem melhor flagrou o sentimento de despedaçamento, de um coração em confronto com a exterioridade adversa. Ele inaugura o encontro do poeta com a cidade moderna e tudo que isso acarreta. Em meio à multidão o poeta perde sua aura, torna-se um comum aos olhos dos passantes. Sem a condição sublime, ironiza a perda dessa aura clássica, mas adquire novo tormento interior. Passa então a angustiar-se com a realidade urbana desconhecida até então e que não lhe diz respeito plenamente. Cultiva o isolamento, põe ênfase na subjetividade e na reafirmação do íntimo que retomam ideais do Romantismo. O poeta assume assim sua condição de marginalidade, na qual empenha o seu lirismo, atribuindo a si um modo de interferência antagônico ao seu meio (o poeta Paulo Leminski dizia que Torquato era o último romântico).   

A plataforma poética de Torquato Neto contém esse tipo de sentimento. A marginalidade nele está intrinsecamente vinculada a sua produção poética, é assumida, ele reivindica um “estar à margem” a fim de ficar à vontade com sua poesia. Assim, o poeta pode centrar-se no seu íntimo e no momento presente, no aqui e agora, despreocupado com o futuro. A metáfora do “poeta kamikaze” (Waly Salomão) se aplica bem a Torquato: a poesia é tudo o que lhe interessa, está acima de qualquer outra coisa, confunde-se com sua própria vida. Tudo o que propõe provoca intervenção no plano da vivência corporal, não há distanciamento entre corpo e palavra. As ações têm sempre caráter de urgência e finalidade em si mesmas.  

Percorrendo a obra do bardo piauiense, percebe-se a consciência assustadora do drama de seu tempo, o comprometimento que imbrica a poesia e a vida de forma inseparável, e encerra as obras como frações da totalidade existencial. Por isso o Anjo Torto não nega a poesia, mantém sua crença na possibilidade da arte, em sua força. 

Para ele, a arte necessita de brutalidade para ser autêntica. Precisa ser feita sem medo, encarada como desafio acima das concessões. É preciso algo mais para ser poeta do que apenas escrever versos. Fica claro que o ato de poetar em sentido corrente parece “simples”, basta ordenar de alguma forma algumas palavras, “difícil é não correr com os versos debaixo do braço”. O desafio de ser poeta é levado ao extremo. Torquato reivindica o lirismo inserido no cotidiano, que participa da vida, não distanciado, pronto para assumir possíveis tarefas no momento presente.   

Movendo constantemente a palavra por seus múltiplos significados, ele busca um adensamento do discurso. Ao afirmar que “toda palavra guarda uma cilada”, mostra-se consciente da força e do enfrentamento que pode se tornar a relação poética com a palavra. O signo verbal pode provocar a necessidade constante de decifração e de devoração. Em Torquato, tudo passa pela palavra, desde a busca do desvelamento dos mistérios dele mesmo até a investigação da própria palavra enquanto material de poesia.  

Sua obra possui natureza fragmentária, de dilaceramento, que instaura uma visão de mundo. Mas a aparente incompletude tem o poder de emancipar o discurso poético, deixando de lado qualquer projeto de obra totalizante em si mesma. Em vez disso, ele busca a potência de cada efeito poético, conseguindo peculiar coerência interna. 

Trata-se de produção densa, mas que não se distribui igualitariamente, não se enfeixa em compartimentos delimitados. Com lances escriturais assistemáticos, não segue nenhuma ordem clara e é muitas vezes tautológico, numa ânsia pelo reiterativo, potencializa o discurso com repetições de células poéticas. Vemos um verso construído aqui e logo o reencontramos mais adiante, noutra obra; uma citação num poema pode ser revista numa canção ou numa crônica. Seja em prosa ou em verso, utiliza sínteses experimentais a fim de estabelecer seu discurso, cruzando partículas, notas poéticas. 

Poeta, compositor, jornalista, cineasta, ator, polemista, agitador cultural, Torquato Neto era indomável. Espírito irrequieto, com incrível capacidade de diagnosticar as enfermidades culturais brasileiras e propor corajosos antídotos, ao mesmo tempo em que celebrava todos os valores que considerava de grandeza. Tudo realizado em alta celeridade e com fidelidade agônica aos preceitos em que acreditava. 

Por isso tinha pressa, abriu o gás e deixou sua escritura no mundo.

*Feliciano Bezerra é doutor em Comunicação e Semiótica / PUC-SP e professor de Letras/ UESPI-PI

(Publicado na Revestrés#33 – outubro-novembro de 2017, Edição Especial Torquato Neto).