Ozeli Oliveira dos Santos

Não poderia começar estas linhas sem fazer uma pergunta especialmente para a leitora: o cuidado de si começa da porta para dentro? Neste momento você certamente deve estar imaginando várias situações que reflitam esta indagação, mas vamos lá, quero entrar em diálogo com você. Vamos refletir juntos?

Em posição de mulher negra e piauiense é de extrema importância que comece geograficamente falando bem de perto, de uma história passada no Estado do Piauí: a história de Esperança Garcia, uma mulher negra escravizada reconhecida como a primeira advogada negra do Brasil. De acordo com os registros, Esperança aprendeu a ler e a escrever com padres jesuítas na fazenda Algodões. Após se casar e ser mãe, foi separada do seu marido e transferida para fazenda Poções, lugar onde sofreu inúmeras violências físicas e mentais. No entanto, Esperança tinha uma arma poderosa nas mãos: “sabia ler e escrever”. Sabiamente, em um ato para salvar seu filho e sua própria existência, recorreu ao direito de batismo, prática concedida a escravos, indígenas e pessoas consideradas forasteiras.

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. […]. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.”

Assim como Esperança Garcia, entre outras grandes mulheres, temos a história digna de ser lembrada de Maria da Penha (1), mulher que teve sua vida transformada pela violência no ano de 1983, com a primeira tentativa de assassinato: um tiro nas costas disparado pelo marido, que a deixou paraplégica. Em seguida, ela foi mantida em cárcere privado, quando foi vítima, pela segunda vez, de uma nova tentativa de assassinato. Marco Antônio, seu marido, tentou eletrocutá-la durante o banho. Para se afastar de casa, então, salvar a própria vida e não perder a guarda dos filhos, Maria da Penha recorreu à justiça. O resultado desse caso gerou o que conhecemos como a Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006), uma lei que protege as mulheres do Brasil contra violência doméstica.

Em 2023, a cada 6 horas, 1 mulher foi vítima de feminicídio. O amparo público existe, porém, chega até nós incompleto.

Os dois exemplos aqui expostos são histórias vividas em espaços e tempos diferentes, mas que se encontram pela violência sofrida contra mulheres e praticada por agressores homens. Em ambos os casos, temos mulheres agarrando-se aos meios possíveis para livrar seus filhos da violência e salvar o corpo da morte. É sobre esse contexto que remete a pergunta central do texto, “o cuidado de si começa da porta pra dentro?” Em outras palavras: a não-violência começa da porta pra dentro? Compreendo que essa questão responde-se de várias formas, porque o cuidado de si se dá de várias maneiras, desde o individual ao coletivo, parte de um corpo solo, de uma residência, uma cidade, a um Estado, um País.

O corpo é lugar da nossa morada, é através dele que existimos, nos relacionamos com as coisas do mundo e com as outras pessoas. Neste aspecto, do meu ponto de vista, para sobrevivência do corpo e continuidade da vida, se faz necessária saúde física, mental e espiritual. Não aprofundaremos as inúmeras situações que levam a doença do corpo, mas nas pressões causadas pelo convívio entre pessoas, na vida privada e pública, especialmente de mulheres em situação de desigualdade. É importante lembrar que a maioria é negra. Segundo Patrícia Hill Collins (2022) são dadas “prisões para nossos corpos e armários para nossas mentes” (2). Quando pensamos nas prisões a partir do contexto do corpo, visualizamos as mais comuns das prisões: a física, a sexual e a psicológica. Por exemplo, uma bem comum e normalizada pela sociedade, especialmente cristã, diz que a mulher casada deve fazer sexo diariamente com seu marido porque é obrigação; ou quando uma mulher é convencida a ter filhos porque supostamente ela nasceu para parir e cuidar do lar com todo o seu pacote.

No caso de uma residência, uma casa, um lar onde vive uma família, logo se nota quem tem as maiores responsabilidades. Em pesquisa feita no ano de 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que as mulheres passam, em média, 21,3 horas semanais nessas atividades, enquanto os homens utilizam 11,7 horas (3). Veja que, além dessa demanda, muitas mulheres precisam trabalhar fora e ainda cuidar dos filhos. São essas mesmas mulheres que, em muitos casos são silenciadas, agredidas e violentadas pelos seus companheiros. No entanto, mesmo diante dessa realidade, muitas mulheres permanecem e aceitam tais condições, por serem prisioneiras da dependência emocional e por falta de recursos, políticas e incentivos que ajudem esta mulher em suas necessidades básicas para o próprio sustento e o sustento dos seus filhos.

Os olhos que precisam me ver não são os da violência, mas os que solidariamente me deixam viver. São os olhos que cuidam de mim da porta para dentro.

Nos planos de uma cidade, estado ou país, ocorrem os mais comuns desamparos sociais básicos, como não ter políticas públicas eficientes capazes de garantir saúde, educação e segurança. Temos, teoricamente, acesso à saúde pública, mas são acessos burocráticos que dificultam o pronto atendimento; a educação é um direito de todos, no entanto, nem todos conseguem chegar à sala de aula, por não terem o básico, como transporte público; quanto à segurança, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (4), em 2023, a cada 6 horas, 1 mulher foi vítima de feminicídio. Diante disto, o amparo público existe, porém, chega até nós incompleto. Outro exemplo muito comum: quando precisamos nos ausentar do lar para estudar e trabalhar, e não temos onde deixar nossas crianças. Essa é a realidade da maioria das mulheres brasileiras.

Em meio às experiências do cotidiano, as individuais, em nossos lares, e as coletivas, na comunidade, inclusive as de mulheres negras, nos deparamos com situações e sobrecargas que nos fazem perder de vista nossa própria percepção de estar no mundo. Há um lugar imposto cujas exigências sociais e afetivas nos roubam de nós mesmas e, quando nos deparamos, já estamos doentes. Doentes por dentro e por fora; ou já não existimos mais. São necessários cuidados com os corpos e com a saúde mental em todas as dimensões da vida. Esse movimento acontece quando valorizamos o dom da vida e o que há de positivo; quando não aceitamos imposições, discursos e ações que nos fazem silenciar, quando tentam nos impedir de seguir e ocupar nosso lugar de fala e também de ação nas relações singulares e plurais da convivência humana.

Mesmo diante de todas as dificuldades que temos de atravessar até nosso destino, insisto em dizer que viemos ao mundo da forma mais linda, a de existir e coexistir como mulher. Neste momento do texto, acredito que, numa perspectiva individual, é somente pelo cuidado de si que somos capazes de superar e militar contra o que nos desconstrói e tenta nos destruir. Essa construção e reconstrução são ações possíveis através do amor-próprio. Veja o que afirma a filósofa bell hooks (5):

“Amor-próprio é a base de nossa prática amorosa. Sem ele, nossos outros esforços amorosos falham. Ao dar amor a nós mesmos, concedemos ao nosso ser interior a oportunidade de ter o amor incondicional que talvez tenhamos sempre desejado receber de outra pessoa. Quando interagimos com os outros, o amor que damos e recebemos sempre é necessariamente condicional. Embora não seja impossível, é muito difícil e raro que sejamos capazes de estender o amor incondicional aos outros, em grande parte porque não temos como exercer controle sobre o comportamento deles e não podemos prever ou controlar totalmente nossas reações a suas ações. Podemos, contudo, exercitar controle sobre as nossas. Podemos nos dar o amor incondicional que é o fundamento para a aceitação e a afirmação sustentadas” (2021, p. 74).

Contudo, é evidente que precisamos estar bem interiormente e externamente para oferecer amor; é necessário compreender em que lugar estamos pisando e como estamos sendo tratadas em nossas relações interativas. Para bell hooks (2021) é preciso que percebamos por que ainda estamos presas a sentimento de baixa autoestima e auto ódio […]. Se não encontramos no tabuleiro da convivência a confiança, o compromisso, o cuidado, o respeito, o conhecimento e a responsabilidade, é preciso urgentemente introduzirmos isso em nossas vidas. Na visão da filósofa, isso pode ser encontrado na ética do amor em suas várias dimensões: familiares, românticas, de amizade, religião e em toda comunidade.

Tendo isso em vista, é preciso que olhos de solicitude me vejam: os meus próprios olhos, os olhos do meu companheiro, os olhos da minha cidade, os olhos do meu Estado e os olhos do meu País. Isto porque os olhos que precisam me ver não são os da violência, mas os que solidariamente me deixam viver. São os olhos que cuidam de mim da porta para dentro.

Ozeli Oliveira dos Santos é Cientista política. Mestra e doutoranda em Filosofia/UFPI. 

***

1. Sobre a história de Maria da Penha confira com detalhes no endereço: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/nucleo-judiciario-da-mulher/o-nucleo-judiciario-da mulher/quem-e-maria-da-penha

2. Patrícia Hill Collins faz uma reflexão sobre a situação das prisões e armários na qual são jogados os afroamericanos, refletindo desde as grades de um presídio a outras modalidades de prisões como a do corpo, econômica, entre outras. Texto na obra: Política sexual negra: afro-americano, gênero e o novo racismo. Edição brasileira: Rio de Janeiro, Veritas, 2022.

3. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/pnad-mulheres-gastam-quase-o-dobro-de-tempono-servico-domestico.

4. https://forumseguranca.org.br/

5. Em minúsculo, por preferência da autora.

REFERÊNCIAS

hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. tradução Stephanie Borges. São Paulo: editora, Elefante, 2021.

Hill Collins, Patrícia. Política sexual negra: afro-americano, gênero e o novo racismo. Tradução, Ana Carolina Correia Santos das Chagas. Editora Via Veritas. Rio de Janeiro, 2022.

Pilar, Vitória. A carta de Esperança, 2023. https://piaui.folha.uol.com.brhttps://piaui.folha.uol.com.br/carta-de-esperanca . Acesso em: mar. 2024.