Janeiro de 2019 é o ponto alto do verão no Brasil. Acesso as redes sociais, visito as postagens com as hashtags relacionadas ao movimento Body Positive (BoPo) e acompanho alguns relatos de pessoas, sobretudo mulheres, contando que estão indo à praia pela primeira vez em anos. Uma delas diz que, após dez anos, finalmente teve o seu dia de praia, e outras tantas compartilham a experiência de vestir um biquíni pela primeira vez na vida.
Entre os relatos, também leio aqueles que reconhecem que ainda não conseguem superar o pânico do julgamento social (moral), fundamentado no padrão hegemônico do “corpo de verão”, a ponto de exporem seus corpos usando biquínis em público. Outras tantas mulheres contam, inclusive, que ainda não conseguem ir à praia.
Ir à praia em pleno verão brasileiro. Não conseguem. Ir à praia após dez anos. Vestir um biquíni pela primeira vez na vida adulta. Compartilhar tudo isso nas redes sociais.
Se por um acaso você estiver achando que estes comportamentos são um exagero ou vitimização, peço a gentileza de ficar até a última linha. Estas palavras são (também) para você.
As situações descritas acima não tratam apenas de uma ida à praia ou de um biquíni. As pessoas não estão buscando somente uma foto para “lacrar” no Instagram ou uns minutos de atenção em forma de likes ao exporem suas intimidades nas redes sociais. Quem assim o viu ainda tem mais a enxergar.
Desde a década de 1990, o Body Positive tem se configurado como um movimento político que luta pela não marginalização dos corpos que não se encaixam nos padrões estéticos dominantes. Nesse sentido, as redes sociais da internet são o espaço de atuação principal dos e das ativistas do BoPo, que utilizam plataformas e aplicativos como YouTube, Facebook, Instagram e Twitter como ferramentas de mobilização em torno de questões sobre o corpo, padrão de beleza, autoestima, estereótipos, estigmas, diversidade de gênero e sexualidade.
Ao politizarem o corpo no ambiente online, colocam no centro do debate aquilo que culturalmente foi-lhes doutrinado – que suas aparências físicas seriam motivo de vergonha e sinal de fracasso –, e fazem uma reflexão crítica contra a estigmatização, permeada por uma estética/ética de reconhecimento de outras formas de ser/estar no mundo. Com isso, o movimento Body Positive tem demonstrado uma capacidade excepcional de condensar diversas das lutas identitárias da atualidade em sua atuação política ao reunir o combate à gordofobia, ao racismo, ao sexismo, à homofobia, à lesbofobia e à transfobia, por exemplo.
O Body Positive se propõe a subverter a máxima recorrente do “corpo que quero ter” na direção do “com o corpo, o que quero dizer?”.
Ao atuar na contramão da estetização da vida, que a limita em torno da busca pelo “corpo perfeito”, o BoPo se propõe a subverter a máxima recorrente do “corpo que quero ter” na direção do “com o corpo, o que quero dizer?”. Com isso, as e os ativistas Body Positive têm utilizado suas imagens corporais (com marcas, estrias, celulites, dobras, pelos etc.) a serviço de um discurso pautado na aceitação, na segurança afetiva e na valorização de todo tipo de corpo. Ao fazerem isso, têm ultrapassado as fronteiras do universo digital para influenciar a vida cotidiana de outras pessoas.
A raiz do BoPo está apoiada no princípio que busca o descolamento do conceito de que o normal (padronizado pelo socialmente desejável) é belo e bom, e de que o anormal (o diverso, distinto) é feio e mau. Essa ideia de normalidade associada à capacidade dos indivíduos de adaptação à expectativa social dominante resulta em dicotomias limitadoras (menino/menina, gordo/magro, feio/belo, feminino/masculino, normal/anormal). São essas “cabeças duais” e normatizadoras que o BoPo está questionando com sua atuação para fazer frente ao direito de existir na diversidade.
Para completar o cenário deste janeiro de 2019, assistimos à posse do “novo” governo, cujo conceito de normalidade está entrelaçado por ideias e ideais de cunho eugenista e com tendências fascistas. Da campanha eleitoral às primeiras medidas no governo, vem atando cada vez mais forte o nó da expectativa social normal à heteronorma, além de ser declaradamente antifeminista e seguir na contramão da luta por direitos humanos. Esta forma de governar já instalou uma grave ameaça a tudo o que perpassa o campo dos valores na direção da construção de uma ética de reconhecimento, de segurança e contra a estigmatização.
A fala governista é a ira desatada. “Nós vamos acabar com o politicamente correto”. “Nós vamos acabar com o ativismo no Brasil”. Durante o processo eleitoral, vimos uma campanha pautada por uma comunicação que seguia na contramão do esclarecimento, que fazia uso de ruídos e fake news (notícias falsas) que favoreciam a confusão e a manipulação dos fatos, e agora estamos assistindo a esse modus operandi do “disse ontem/ desdiz amanhã” se tornar política oficial de governo.
O embaralhamento intencional, que tem ares de desgoverno ao governar, faz acreditar que não se sabe para que lado vai. “Nós não temos ideologia”, dizem. “Nós vamos combater as ideologias”, também dizem. Aqui parece residir um equívoco conceitual estrondoso: tudo aquilo que foge do discurso puro (oficial) é tido como ideológico. Ideologia está sendo usada como um rótulo conferido às lutas e bandeiras levantadas tradicionalmente pelos movimentos políticos alinhados com a esquerda, passando a ser sinônimo de desviante. Parecem não se aperceberem o quão ideológico é o seu discurso anti-ideologias. Não se apercebem?
Como serão governados os corpos em sua diversidade por um Estado que flerta com a estética fascista, cujo padrão de beleza e ética estão assentados na ideia da virilidade masculina, branca, sóbria, austera e heteronormativa?
O corpo está no centro do fascismo e o fascismo no centro do poder no Brasil.
O desafio está posto. Existir passa a ser sinônimo de resistir. Atuar sob a perspectiva Body Positive no Brasil de 2019 já pode ser considerada tarefa árdua, exigente de paciência e de criatividade nas cotidianidades resistentes, sem perder de vista o coletivo. Seja na praia, nas ruas, nas escolas, nas universidades, é preciso manter a sentinela alerta para contestar as políticas que insistirem em colocar os corpos diversos, indisciplinados, desejosos, subversivos e desobedientes sob cabresto.
2019, o ano em que teremos de fazer novo (e de novo) o feliz ano velho.
Luciana Pionório é doutoranda em Sociologia pela UFPB e pesquisadora do Movimento Body Positive. É mestra em Sociologia (UFPB) e graduada em Ciências Sociais (UFPE). É de Recife (PE).
Artigo publicado na Revestrés#39- janeiro-fevereiro de 2019.