Décio Pignatari lembra que por volta de 1963 ou 1964, não sabe ao certo, numa conversa com Guimarães Rosa, este lhe disse que “a prosa de ficção brasileira era muito frouxa”. Aponta que concorda imensamente com Rosa e, quase com ironia, quase rindo, comenta que ele prosseguiu dizendo: “Quer dizer uma coisa assim… uma prosa muito boca mole, uma prosa que não tem caráter. Eu gosto mais de uma pedra pedregosa, de uma prosa pedregosa e a prosa brasileira é muito frouxa, é flácida.” Isto que diz Rosa vai ao encontro do que anota Paul Klee, numa carta a Alfred Kubin, de 12 de maio de 1919, enviada em 10 de junho desse ano, quando imagina o que se evidencia a partir de um confronto entre uma “ideia de comunidade” e “uma arte extremamente individualista”. Klee diz que este tipo de arte, individualista, que pode ser lida aí como a que é também quase sempre frouxa, flácida, boca mole, é “um luxo capitalista”, logo própria para “a curiosidade superficial de ricos snobs”. E nada mais.

Klee diz que este tipo de arte, individualista, que pode ser lida aí como a que é também quase sempre frouxa, flácida, boca mole, é “um luxo capitalista”.

Avance-se sobre isso o hábito, ainda, daquilo que se fala, quando falar ainda não é dizer, até porque falar nunca é dizer, que gira em torno das mesmas 3 ou 4 coisas, porque não há nada, a não ser a regra cínica de um vocabulário de plano imperativo, enfadonho, nada  inventivo: é preciso, devemos, é necessário, tem que etc. E isto é demasiado usual, e perigoso. Ao perceber a ação equívoca de uma humanidade dedicada ao truque, que invariavelmente sucede ignorância e violência, Pier Paolo Pasolini denuncia com ojeriza o descompasso da cultura e da política que persegue tal regra, produzida pela mutação antropológica, apenas para consumo e num pacto mímico: “não há mais que diferenças retóricas” e “o nivelamento cultural [óbvio e ordinário, abaixo de zero] tende a suprimir também as diferenças psicológicas”. Uma laminação traçada “pelo conformismo total da ideologia do consumo e do hedonismo liberal”, o que tem muito a ver com um lastro cristão do capital que recusa a presença revolucionária de um Jesus antes de Cristo: “o nome Cristo é grego: com certeza, Jesus, falante do aramaico, jamais ouviu essa palavra, que é, apenas a tradução do vocabulário hebraico meshiah, o ungido, o consagrado com óleo […]. Seu nome mesmo, Jesus, é judeu. E isso reporta às suas origens, à fé tradicional do povo em que nasceu”, lembra Leminski no seu bravo e bonito ensaio em torno da figura do nabi: beduíno e de espada em punho. E aí está a implicação daquele que diz por parábolas, antes do cristianismo, ou seja, por um desvio do caminho.

Por isso Pasolini ajusta a sentença ao imaginar que o poder, a partir da mutação antropológica, é demo-cristão. E os que cumprem seus espaços de poder, até para indicar – e aí também violenta e imperativamente – que algum movimento seria produzir um erro, têm muito também a ver com “manobras de autômatos e sorrisos para cobrir o vazio”. Pasolini diz ainda que somos todos cúmplices, claro que somos, ainda mais se agimos reproduzindo as frases feitas que não conseguimos enfrentar por falta de um vocabulário mais atento e expandido, como se estivéssemos diante, apenas, de uma fatalidade biológica, o fascismo, o novo fascismo, que “contamina o tecido social em todos os níveis, uma doença ideológica que ataca a alma e não poupa ninguém.” Ou seja, a vida como um culto à regra cínica: só se pode falar as mesmas coisas acerca das mesmas coisas para que, assim, se mantenha o absoluto da tolerância, que não passa de um outro truque para a condenação [e que tem recebido um novo termo falseado, empatia]; tolerância que, para Pasolini, nunca é real, mas sim a prática de uma ideia de poder que não se opõe nem rivaliza com a ordem do capital.

Só se pode falar as mesmas coisas acerca das mesmas coisas para que, assim, se mantenha o absoluto da tolerância, que não passa de um outro truque para a condenação [e que tem recebido um novo termo falseado, empatia].

O que nos sobra, como esperança incansável, é retomar num “anacronismo desprendido”, por exemplo, uma ideia de “limite”, como a que vem do filme de Mário Peixoto, de 1931, em torno de um jogo ainda não escrito: um cinema que não existia. Há uma questão aí – no termo, nas imagens, no pensamento e no procedimento –, que diz muito acerca de um desvio do caminho. Repare-se: 3 náufragos, um barco à deriva, nenhuma fuga, nenhum retorno, planos imensos e, seguindo o que disse Marina Moros sobre o filme, “nada de margem ou de resistência, mas anacronismo desprendido. Nem retraso, nem nostalgia, mas desacordo temporal – e de lugar – com um cinema que não existia.” Seguindo o corte, Mário de Andrade se impressiona com a poesia de Mundéu, livro que é do mesmo ano de Limite, quando Mário Peixoto escreve um cinema diferido de livros próximos ao seu, como o Alguma poesia [1930] de Drummond, por exemplo. Tanto o filme como o livro armam um pacto, um vínculo, entre a terra e o mistério, e uma virtude que Mário de Andrade denomina como “a inconsciência dos fatais”.

O livro tem apenas 10 poemas entre longos e quase longos. Volume magro, aberto, com imagens que roçam uma extensão de cena larga e plano-sequência, em que a vida ao redor é toda muito longe das mãos e sem as circunstâncias medianas que alimentaram e alimentam boa parte da poesia brasileira de antes e de agora. O que está em jogo é a linguagem das coisas, uma memória das coisas. O poema Mulher no meio do campo, por exemplo, é lacerador: uma composição de montagem rara e sem subserviência a qualquer modelo, sugerido ou imposto, com uma tarefa política também rara: tentar, minimamente, o tempo inteiro, dizer outras coisas de outros modos. Ele escreve: “mulher de vestido vermelho / vermelho / vermelho mesmo que dói / que eu vejo ao longe / no meio do campo // imagino tanta coisa // você cortou cana na roça / carregou o feixe na cabeça / encostou a cana na casa de ripas / e ficou de mãos na cintura / imaginando também / parada / olhando / olhando / aquele mundo em redor // o sol evaporando a água / a terra / tão quente / que estala de seca // foi tudo que vi / do trem / quando passava / o mais / não sei // mas imagino muita coisa / de seu vestido vermelho / da sua moleza / de mãos na cadeira / cuspindo de esguicho // se eu passasse / todos os dias / com o trem / saberia toda a sua vida / os seus segredos / são comuns com a natureza / dependem do sol e da chuva / do frio e do quente / caminham com eles / combinam / se o trem parasse // quem sabe / hein / quanta coisa / iria saber / daquele vermelho berrante / que vai ficando pra trás / pequeno / pequeno / um ponto luminoso / na paisagem rápida / que foge do trem”.

Anos depois, em 1963, o mesmo ano suposto da conversa de Décio e Guimarães, Henriqueta Lisboa publica Além da imagem, um livro para rasurar o sentido de uma aparência do real que toca, outra vez, de outras maneiras, uma ideia de limite. Só 9 anos depois volta a publicar poemas, com O alvo humano. Se armadilha de caça ou o que ameaça desabar, e ainda ruma ou entulho, o termo mundéu não é, se não, ao mesmo tempo, um alvo constituído pelas imagens que, ao lado, não podem ser tocadas. Henriqueta provoca um gesto silencioso, sem individualismo, mas com rigorosa singularidade. A única paridade diferida ao que ela inventa em seus poemas, e também noutro espectro, é a poesia-pensamento de Joaquim Cardozo. O que engendra é um dizer, com força, que contraria uma fala de circunstância rasa e, principalmente, numa paráfrase infinita: nem retraso, nem nostalgia, mas desacordo temporal – e de lugar – com uma poesia que não existia e nem existe ainda.

Assim como o livro de Mário Peixoto, o livro de Henriqueta é também magro, e persegue uma linguagem das coisas, com as coisas, uma memória do mundo e a denúncia do espectro assolador de uma vida sem força para a composição de qualquer im-potência à comunidade dos não-aparentados: um pensamento anti gravidade. Ela escreve em Rebanho: “Apesar dos sete mares / e outros tantos matizes / somos um. / Apesar dos ritos múltiplos / das divergências das estirpes / da geometria e do floreio / somos um. // Na conjuntura de viver / para morrer – tão só – / quem sequer assoma / ao negro espelho sem que / todo se inscreva em negror / de cerração. Negação? / As redes do amor com suas / eivas de sempre – as foscas / malsinações – / o obscuro planejam: / ovelhas, para o rebanho. // E muito embora / ao crepúsculo recurvo / sobrelevem largos olhos / e nos longes amanheçam / lavras de ouro lavadas / de sangue e suor, / vigora o medo / de se atingir a verdade / – novo módulo – / que ao embalo da memória / para o vale nos impele / dos ancestres. // Todos procuram, ninguém / no que avulta reconhece / de bisonho / a pura lucilação / que nos levaria à fonte / à água da fonte, ao fio / do labirinto que é sede / e desistência larvar / diante de um cego / espelho / em que se anulam cor e forma / no total. // Unidos fortalecidos / eis-nos em compacto bloco / caudatários / da bronca da espessa marcha / circular. // Uma ovelha branca? / Infiel. / Transparente intacta / portadora dos raios / solares? / Infiel.”

E, por fim, numa “pura lucilação”, o que figura uma aproximação com a ideia de Pasolini em torno de um vazio do poder – por sua vez muito mal lida por Georges Didi-Huberman, que perde de vista o descompasso do desespero e se fixa na imagem dissoluta do vagalume como dilação de uma esperança também vazia –, e se todos cúmplices nesse vórtice, círculo sem elipse ou apenas o quadrado [a forma absoluta e fascista], sem nenhuma capacidade, necessidade ou possibilidade de tocar o infinito da espiral, fica ainda uma pergunta ativa tal como a anotada por Paul Klee: “Mas que podemos nós entender de tudo isto?”

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou Pasolini: retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa), Avião de Alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015), entre outros. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios (Lumme Editor).

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Publicado na Revestrés#49. 

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