Belém no palco, Brasília no pulverizador.
Belém recebeu a COP30 como a primeira conferência climática da ONU realizada dentro da Amazônia. O gesto foi político e simbólico: discutir clima onde o clima agoniza. O governo brasileiro apresentou a cúpula como “COP da implementação”, para sair do teatro global e entrar no fazer. E havia material concreto para essa narrativa antes mesmo das delegações chegarem. Dados oficiais do INPE e do PRODES apontaram que a taxa anual de desmatamento na Amazônia Legal em 2024 caiu para 6.288 km², redução de 30,63% em relação ao ano anterior, a maior queda percentual em quinze anos. Em 2025, até julho, o desmatamento acumulado seguia em queda, no menor patamar em onze anos. Esses números sustentam, com chão, a defesa do esforço do governo Lula e da ministra Marina Silva: a política ambiental federal voltou a produzir resultado mensurável.
Na COP30, o Brasil também trouxe o eixo da floresta para o centro do dinheiro do mundo. O Tropical Forests Forever Facility, mecanismo proposto pelo governo brasileiro, recebeu quase 7 bilhões de dólares em promessas iniciais e foi apresentado com a meta de se tornar um fundo de até 125 bilhões de dólares para remunerar países tropicais que mantêm florestas em pé, reservando uma parcela do retorno para povos indígenas e comunidades locais. Houve ainda promessas bilionárias para fortalecer direitos territoriais indígenas. No papel, a conferência consolidou a imagem de um Brasil que volta a liderar uma agenda climática com a Amazônia no centro.
Só que o Brasil tem o hábito de produzir um contraplano no mesmo take. Enquanto Belém projetava futuro, Brasília seguia assinando presente velho. Durante a própria COP30, o Ministério da Agricultura registrou 30 novos agrotóxicos. E 2025 abriu em ritmo igualmente acelerado, com 73 novos insumos liberados, 44 deles agrotóxicos químicos e 29 bioinsumos. O retrato do modelo dominante fica claro: por um lado o Estado tenta reposicionar o país como liderança climática; por outro, mantém a esteira de expansão do pacote químico. Os números não precisam de adjetivo. Eles já dizem, sozinhos, que o motor agroexportador continua operando numa lógica que não conversa com o futuro climático prometido.
A permissão para envenenar até o leite materno vem da crença popular de que é o agronegócio o responsável pela alimentação do país que se esquece dos pequenos produtores e maltrata quem planta o arroz orgânico que alimenta a América Latina. A agroecologia, como toda e qualquer alusão à ecologia, ainda é vista por “geral” como coisa de “ripigudivaibis”. Enquanto isso, porcos do outro lado do mundo bebem a água que irriga a soja de fronteiras agrícolas abertas no correntão, como a do MATOPIBA, região ecotonal entre a caatinga e o cerrado nordestinos, essencial para o equilíbrio hídrico local. Se é que ainda existe o que seja de importância apenas local, nesse mundo com um monte de Deus.
O veneno não está no prato apenas por causa do agrotóxico, ofensivo produzido sob o rótulo de defensivo e misturado à linha de produção de remédio; está também chegando aos corpos indígenas por meio do mercúrio usado na mineração. Está adoecendo as populações urbanas que correm para o trabalho, abraçadas em pacotes de ultraprocessados. Ah, o dinheiro, o eterno dinheiro.
Sem mecanismos que garantam recursos para projetos urbanos e sem enfrentar seriamente as desigualdades, a promessa de cidades resilientes corre o risco de permanecer como mais um capítulo das declarações internacionais: tecnicamente impecáveis, politicamente tímidas e socialmente tardias.
Antes mesmo de a COP começar, a escolha de Belém virou alvo de uma sequência de tentativas de deslegitimação. Uma parte delas veio na forma de críticas logísticas que se transformaram em críticas políticas. Reportagens internacionais destacaram a capacidade hoteleira insuficiente e preços altíssimos, alertando para o risco de exclusão de delegações mais pobres, ONGs e observadores e para a possibilidade de uma conferência cada vez mais elitizada. Paralelamente, veículos e organizações brasileiras relataram controvérsias sobre obras, desigualdade urbana, impactos sociais e remoções em áreas afetadas pelos preparativos, alimentando o discurso de que a conferência serviria para esconder a “pobreza” de Belém. As críticas existiram e foram documentadas. O que elas revelam é a velha manobra de deslocar o foco da floresta para a vitrine urbana, como se a desigualdade amazônica fosse produto da COP e não de um abandono histórico.
E por falar em crítica vale ressaltar que, seja pelo risco de vento, chuva, fogo ou lama, de algum modo é realmente necessário abordar a urbe, não vale? Vale. A discussão sobre cidades e resiliência ambiental na COP30 evidencia que a distância entre o discurso e a transformação urbana concreta ainda é profunda como um buraco de chupar petróleo. A reafirmação da urbanização sustentável e da necessidade de alinhar agendas de clima e desenvolvimento soa correta, mas insuficiente diante da lentidão para fazer o financiamento climático chegar efetivamente às cidades e às populações que vivem nos territórios mais vulneráveis. Sem mecanismos que garantam recursos diretos para projetos urbanos e sem enfrentar seriamente as desigualdades que deixam pobres urbanos e moradores de assentamentos informais na linha de frente da crise climática, a promessa de cidades resilientes corre o risco de permanecer apenas como mais um capítulo das declarações internacionais: tecnicamente impecáveis, politicamente tímidas e socialmente tardias. É o tal do racismo ambiental, que atinge as populações vulneráveis antes de chegar nos remediados de grana, para depois de se alastrar como dano ambiental multilocalizado, colocar os milionários num foguete rumo a Marte. Ah, o dinheiro, o eterno dinheiro.
Uma metáfora brutal: a imagem de delegados evacuando um pavilhão por causa de fogo, no meio da Amazônia e em plena crise climática, não diminui a conferência. Ela a explica. A COP aconteceu no pulmão que pede para respirar.
Fato é que discutir sem implementar não basta. Prova disso é que o espaço projetado para sediar a COP foi atravessado por uma metáfora brutal. No dia 20 de novembro de 2025, um incêndio na Zona Azul levou à evacuação do centro de convenções, interrompeu negociações por algumas horas e deixou pessoas atendidas por inalação de fumaça, felizmente sem vítimas fatais. O fogo foi controlado rapidamente, mas expôs fragilidades de infraestrutura e segurança. Ainda assim, nada disso retirou o essencial: a COP aconteceu no pulmão que pede para respirar. A imagem de delegados evacuando um pavilhão por causa de fogo, no meio da Amazônia e em plena crise climática, não diminui a conferência. Ela a explica. É uma alegoria interessante. E era um belo dia para se falar de adaptação urbana, resiliência e racismo ambiental.
O contraste não é restrito a Belém versus Brasília. É modelo agrícola, é negócio fechado, é greenwashing, é banco da paz, é moderação do cuidado, é exacerbação do risco, é pau, é pedra versus caminho atrasado a discutir o passado quando já se falava em crescimento zero. Depois que cair o céu Yanomami, em cima da cúpula da Terra, vale aproveitar os buracos feitos pela mineração e pela exploração de combustível fóssil, para construir as tais cidades resilientes das quais se tem falado? Topa morar no abismo?
A própria COP30 expôs a correlação de forças por dentro: a presença de centenas de lobistas ligados à agricultura industrial, incluindo setores de carne, soja e agroquímicos, em quantidade superior à delegação oficial de países vulneráveis ao clima.
Nesse embate, o pós-COP mostra um Brasil em cabo de guerra. O governo federal promove a queda do desmatamento, cria mecanismos globais de financiamento florestal e recoloca o país na mesa internacional. Ao mesmo tempo, o modelo agroexportador mantém a dependência química em alta velocidade. A fabricação de abismos não para. Isso não é apenas economia. É poder político e cultural. A própria COP30 expôs essa correlação de forças por dentro. Uma investigação do Guardian em parceria com a DeSmog registrou a presença de centenas de lobistas ligados à agricultura industrial na conferência, incluindo setores de carne, soja e agroquímicos, em quantidade superior à delegação oficial de países vulneráveis ao clima. Isso não prova captura automática, mas descreve o peso material do setor em um espaço que deveria negociar o futuro do planeta. O AGRO NA COP! É POP?
Daí a ironia que fica depois do último aplauso no auditório amazônico. O Brasil de antes normalizava a fumaça no campo, o de hoje não aceita a fumaça no palco, na cidade ou no campo. A COP foi o gesto de quem quer mudar. A floresta não é cenário, é condição de país. Belém lembrou ao mundo, apesar das tentativas de deslegitimação, das acusações oportunistas e do incêndio, que não existe amanhã viável num planeta inviável. Se a COP30 foi a conferência do “faça”, o recado que a Amazônia nos deu é mais antigo e mais urgente: faça agora, porque o pulmão está pedindo ar e O AGRO NÃO POUPA NINGUÉM!
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Jacqueline Lima Dourado é jornalista, professora de Jornalismo da Universidade Federal do Piauí e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, PPGCOM-UFPI. É doutora e pós-doutora em Comunicação, líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Política e Diversidade, COMUM-UFPI/CNPq. Atua como Coordenadora de Comunicação do CIATEN e como Superintendente de Comunicação da Universidade Federal do Piauí.
Flavia Ribeiro Barreto é advogada, pedagoga e artista visual. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí – PPGED/UFPI.
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Fontes:
Reuters, No roadmap to end deforestation, but Brazil’s COP in the Amazon delivered for forests, 28 nov. 2025.
INPE/PRODES, taxa de desmatamento 2024 e série histórica; dados oficiais divulgados pelo governo federal.
Reuters/AP/El País, cobertura do incêndio na Zona Azul da COP30 em Belém, 20 nov. 2025.
Le Monde, reportagens sobre capacidade hoteleira, preços e risco de exclusão na COP30, jun. 2025.
Agência Pública, série de reportagens sobre obras, impactos sociais e remoções relacionadas à COP30 em Belém, 2025.
ClimaInfo, cobertura sobre obras e controversas sociais na preparação da COP30, 2025.
Outras Palavras, análise crítica sobre COP30 e Belém, 2025.
Guardian/DeSmog, investigação sobre presença de lobistas agroindustriais na COP30, 2025.
Ministério da Agricultura e Pecuária, atos de registro de agrotóxicos durante a COP30 e no início de 2025.
Ministério das Relações Exteriores. Declaração de Belém sobre o combate ao racismo ambiental. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-de-belem-sobre-o-combate-ao-racismo-ambiental.
COP 30 Brasil Amazônia. Documentos da COP 30. Disponível em: https://cop30.br/pt-br/noticias-da-cop30/documentos-da-cop30.
Carneiro, Fernando Ferreira (Org.) Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015.
IBAMA. Relatórios de comercialização de agrotóxicos. Disponível em: https://www.gov.br/ibama/pt-br/assuntos/quimicos-e-biologicos/agrotoxicos/relatorios-de-comercializacao-de-agrotoxicos.