“Estude, se quiser sair da roça!”, “fulano saiu do mato, mas o mato não saiu dele!”, “caneta de lavrador é enxada.” Provavelmente você já ouviu afirmações desse tipo. Elas compõem o universo teórico-prático da realidade educacional que perpassa, historicamente, a relação campo e cidade, na qual o meio rural foi naturalizado como lugar de pouca gente, com poucas letras, dedicada ao trabalho braçal, não-exigente de atributos intelectuais e tecnológicos.

Essa compreensão está na base do modelo de desenvolvimento brasileiro e latino-americano pre-dominante, que extrai do território rural, apropriado por minorias, matéria “bruta” vegetal, animal, mineral e humana, para ser reterritorializada, de preferência, em grandes centros urbanos, a baixo custo e com alto rendimento financeiro; daí expressar a marca forte do latifúndio, do monocultivo, da agricultura e mineração para exportação, do uso de agrotóxico, da expulsão de povos tradicio-nais, da pobreza e analfabetismo.

Segundo dados do Observatório da Equidade do Conselho de Desenvolvimento Econômico e So-cial, 73% da população brasileira camponesa não completou o ensino fundamental; 23,5% dos(as) que têm 15 anos ou mais de idade são analfabetos(as), 3 vezes mais do que no meio urbano, o que já traduz um escândalo. A média de anos de estudos é baixíssima (4,7), ao lado dos 7,2 anos da população urbana, igualmente baixa. Ensino médio é luxo para poucos, faltam escolas e perspecti-vas. Somente cerca de 17% dos jovens têm ensino médio ou superior.

E a qualidade? 70% das escolas são multisseriadas, a maior parte no Nordeste. 61% dos(as) pro-fessores(as) em exercício não têm formação superior, 90% dos estabelecimentos não têm biblio-teca, 92,77% não têm laboratório de informática, 99,09% não têm laboratório de ciências, sem falar nas dificuldades de água, energia e falta de internet.

Na busca de superação desse quadro vem sendo construída a Educação do Campo. Mas em que se diferencia da Educação Rural realizada nas escolas isoladas, no MOBRAL, no Brasil Alfabeti-zado e tantos outros projetos e programas velhos conhecidos e realizados para o povo do campo?

Trata-se de outra proposta: primeiro, não se pretende levar educação para os “pobres ignorantes da zona rural”; mas construir processos educacionais, escolares e não-escolares com camponeses, sujeitos de direitos. Por isso não se trata somente de Educação no Campo, mas principalmente de Educação do Campo, uma construção própria, em cujo projeto político pedagógico está o reconhe-cimento de uma divida histórica, materializada na concentração da terra, na exploração, na expro-priação.

Segundo, por essa compreensão a Educação do Campo tem em sua base fundacional o compro-misso com a organização coletiva, com a cultura, com a defesa do território e de seus habitantes. Afirma o Campo e os Movimentos Sociais como espaços educativos de nova sociabilidade, cuja plataforma se expressa em um projeto de Campo, que cria interdependência entre reforma Agrária Popular e Educação do Campo.

Quais as principais ações da Educação do Campo? Alfabetização e escolarização, desde a educa-ção infantil até o ensino superior, com formação inicial e continuada de jovens e adultos em dife-rentes áreas do conhecimento, com ênfase nas licenciaturas, visando a formação de professores do campo para permanecerem no campo, valorizando suas experiências, em ações contínuas e articuladas às diversas dimensões da vida.

Terceiro, o exercício prático dessa proposta no processo formativo se realiza através da mística, da autogestão, da presença das comunidades e dos movimentos sociais no processo de formação e na alternância de Tempos Educativos, com Tempo de estudo teórico e Tempo de atividades práti-cas, ambos articulados metodologicamente visando a integração teoria e prática.

Recentemente tiveram inicio na UESPI duas licenciaturas e um bacharelado, Pedagogia, Geografia e Agronomia, respectivamente, em Educação do Campo, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento Sem Terra (CPT), envolvendo 150 jovens e adultos de área de assen-tamentos do Piauí.

Compressões e ações como essas abrem novas possibilidades e já nos permitem anunciar: Não é necessário sair da roça para estudar! Não é necessário sair do mato! A enxada, o lápis, o livro e o trator são instrumentos de trabalho manual e intelectual do lavrador!

 

*Lucineide Barros Medeiros é Doutora em Educação, Professora e Coordenadora do Curso Educação do Campo na UESPI (Universidade Estadual do Piauí)

**Trecho de composição de Gilvan Santos

 

(Publicado na edição #22)