São 02:36 da manhã e estou na frente do computador. Retoquei o batom vermelho para escrever, hábito que adquiri desde que virei jovem professora, dessas com contrato de trabalho, para não ter medo de dizer o que meu coração-cérebro não quer silenciar. São tempos de pandemia e a orientação da Organização Mundial da Saúde é de isolamento social. Ficar em casa tem sido o apelo feito por todos que se importam com a vida humana, por ser a precaução mais eficiente no combate ao coronavírus. A casa, porém, não é um lugar seguro para mulheres, nos dizem os movimentos de lutas para que as mulheres vivam livres de violência há muitos anos. Havia falado sobre o provável crescimento de violência doméstica e familiar, em encontro virtual com uma jornalista no início da quarentena.

Nos dias 11 e 12 de abril de 2020, duas de nós foram vítimas de feminicídio em Teresina/PI e Timon/MA. Por volta das 19h30, do dia 11, recebemos a notícia de que a médica Caroline Naiane tinha sido assassinada dentro de casa, na frente da filha de seis anos, pelo ex-marido, que logo em seguida morreu em acidente de trânsito, provavelmente suicídio. No dia seguinte, acordamos com a notícia de que a comerciante Bárbara Lima foi assassinada dentro de casa, pelo filho, que em seguida foi preso.

Os portais da cidade falaram em assassinatos, a nota de pesar do Conselho Regional de Medicina em homicídio. Ambos ignoraram que o estado brasileiro, desde 2015, tipificou como feminicídio o assassinato de mulheres por razões de gênero, atendendo à reivindicação dos movimentos de mulheres. Nomear não é só um detalhe, é um ato político para evidenciar a realidade, provocar sentidos, atuar diretivamente: mulheres são assassinadas por serem mulheres numa sociedade patriarcal. O patriarcado autoriza homens a se sentirem donos dos corpos das mulheres, podendo fazer com eles o que quiserem, inclusive, eliminá-los.

O fim da vida imposto por homens com quem tinham relações afetivas e a ausência de nomeação pelos espaços de poder são os dois comuns a essas duas histórias. A morte de Caroline gerou comoção, indignação, nota de pesar, manchetes e muitos comentários nos jornais. Da morte de Bárbara poucos ficaram sabendo, ela sequer foi sujeita da oração nas notícias dos jornais, era mais importante atentar para os motivos pelos quais o filho a teria matado. Caroline e Bárbara eram mulheres. Entre as muitas diferenças que existiam entre elas, uma é persistente na decisão de valoração das vidas que são passíveis de luto: o

racismo. Caroline era uma mulher branca. Bárbara, uma mulher negra. Sojourner Truth perguntaria: não seria Bárbara Lima uma mulher?

Andreia Marreiro é professora. Sentipensar e esperançar um outro mundo são seus ofícios. 

A cada terça e sexta um novo texto nessa nova seção. Acompanhe.