O ensino de literatura apresenta múltiplas dificuldades, mas funciona melhor se ligado a uma experiência cultural e a uma contextualização da obra, inevitavelmente abrangendo vários campos do conhecimento. O papel do professor de literatura é também viabilizar interpretações criativas do texto em voga. Embora o drama esteja contido na performance (que engloba teatro, dança, circo etc), falaremos de dois tipos performance, de acordo com classificação apresentada por Richard Schechner (SCHECHNER, 2006, p. 31): performance na vida cotidiana e nas artes. Para Schechner a performance é um comportamento revisitado (SCHECHNER, 2006, p.28). Desta forma, quando realizamos a performance de um texto literário ele está sendo interpretado no mínimo duas vezes, dependendo do número de visões pelas quais o texto passar, incluindo não só a visão do diretor, mas também dos atores e dos vários outros artistas que trabalharão com o material a ser encenado.
É possível que o professor de literatura motive novas interpretações dos textos lidos através do contato físico dos discentes com o material no ato da encenação. Em entrevista à revista Educação e realidade, Richard Schechner afirma que: “A educação precisa ser ativa, envolver num todo mentecorpoemoção – tomá-los como uma unidade. Os Estudos da Performance são conscientes dessa dialética entre a ação e a reflexão” (SCHECHNER, 2010, p. 26). Há também outra dualidade da ficção, que durante a encenação não parece ficção, mas é, e que possibilita um tratamento peculiar da literatura: embora a literatura seja tratada como algo imaginado, poderia ser real. Ou seja, o que é fictício poderia fazer parte da vida. Se assim o fosse, haveria mais propriedade para abordar o assunto. Portanto, ao discutir um texto literário, há um primeiro nível de compreensão que não necessariamente faz com que o texto seja percebido como partícipe da realidade/ contexto do leitor. Se o texto for encenado, no entanto, este será revisitado, passará por outra interpretação e tornará o processo de discussão de obras literárias – comum em uma aula de literatura – muito mais ativo, possibilitando a dialética citada por Schechner. Também no método de Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, a ação e a reflexão são importantes, considerando que as peças do Teatro Fórum (teatro para discussão que será detalhado posteriormente) convidam a participação dos membros da platéia em cena (ação), para posterior sugestão de medidas a serem tomadas para uma vida cotidiana sem opressão (reflexão e discussão).
Schechner e Boal possuem pontos em comum. Os dois estudiosos defendem uma ruptura com o drama ortodoxo, que necessita ser encenado em um palco, normalmente italiano (com uma quarta parede invisível, separando os atores da platéia) e precedido de texto escrito para encenação que preferencialmente será feita de forma realista. Esse texto será a base da encenação e poucas alterações serão feitas. As sugestões de alteração, quando existirem, serão realizadas pela figura do diretor. Para Schechner a performance não é só artística. Portanto, ela pode ser realizada em vários espaços e ser de várias naturezas, além de não necessariamente seguir um texto prescrito. Para Boal existe a necessidade de quebra da quarta parede. Só assim o público pode romper a barreira sagrada que separa a plateia dos atores no palco. Durante pesquisa no Centro do Teatro do Oprimido em 2003 constatei que para o Teatro do Oprimido o texto não só não é central como não é necessário: algumas encenações são iniciadas a partir de improvisos com imagens sem fala (Teatro Imagem); o texto escrito ocorre depois de alguns ensaios. Mesmo assim, há várias versões possíveis deste material escrito após cada montagem, submetendo-o a várias modificações e mesmo múltiplas versões, até porque muitas peças são encenadas para um grupo e contexto específicos em galpões, hospitais, escolas, prisões etc, devendo ser adaptadas de acordo com as demandas de cada público, espaço, período histórico etc.
No Teatro Fórum há o incentivo à discussão de problemas sociais e desta forma a participação da plateia pode ser mais claramente notada. Nas peças do Teatro Fórum, a primeira parte é tradicional – com a separação entre público e atores – dura aproximadamente meia hora e cada cena apresenta ao menos um problema ou erro. Por erro entende-se uma situação social de opressão, sendo o erro, portanto, cometido pelo Opressor e também por uma falta de postura mais libertária do Oprimido. A segunda parte da peça, apresentada por um Curinga, espécie de diretor, consiste em fazer com que o objetivo do público seja consertar ou remediar o erro. O Curinga indica para a plateia que as cenas poderão ser modificadas através da substituição do Oprimido, com o qual a plateia é levada a se identificar. De acordo com a ideologia do Teatro do Oprimido, somente o Oprimido pode ser substituído. Muitas vezes o público, já possuidor de uma história de opressão, se vê claramente nesse contexto, considerando que muitas das peças são apresentadas em locais (edifícios públicos que abrigam escolas públicas, prisões etc) que retratam os contextos socialmente carentes do espectador.
Na metodologia de Boal, os objetivos são claros: identificar a opressão e criar meios para que o Oprimido tenha voz para lutar contra ela. Para Boal, o Teatro só pode ser do Oprimido se ele participar do seu processo. Também para Schechner a educação ocorre somente quando é participativa. Ao adentrar o contexto de uma obra literária, esta se torna objeto de intensa discussão, pois os alunos participam da vida dos personagens como se fosse a sua própria. A discussão também é motivada pela transferência do contexto da obra para o contexto do leitor ou espectador, aplicando uma realidade literária a uma realidade social, tal como visto nas análises acima. Somente a partir de um profundo envolvimento com a obra literária pela sua imaginação, o aluno contribuirá com um avanço no campo interpretativo da mesma, relacionando-a com suas próprias questões e fazendo-a parte da sua vida. É importante ressaltar que essas obras não deixam de ser ficcionais. Os exercícios apenas ajudam na criação de outras possibilidades a partir da obra.
Precisamos ressaltar que teatro é literatura. No entendimento clássico, desde a Grécia Antiga, teatro era próprio do gênero dramático, um dos gêneros literários. Ou seja, o teatro ou drama (texto dramático) estava contido na literatura, assim como o teatro (texto performático) também está contido na performance, e possuía uma unidade de ação e de tempo. Até hoje, primeira metade do século XXI, nos cursos de Letras, textos dramáticos são parte da bibliografia obrigatória. Mas foi principalmente no século XX e com questionamentos sociais e políticos que o teatro pareceu iniciar sua hibridização no Ocidente, tendo como um de seus principais colaboradores no processo a figura do dramaturgo alemão Bertolt Brecht que pregou e difundiu o teatro para educação e reflexão, com várias pausas e momentos narrativos – prólogos, epílogos e diversas interrupções de cenas – que tinham o único objetivo de despertar o leitor/ espectador do transe proporcionado pela emoção gerada através da encenação (o drama em si). Ora, processos semelhantes foram desenvolvidos por outros dramaturgos, mas Brecht criou inúmeros discípulos e difundiu a prática do Teatro Narrativo – híbrido por sua própria natureza, pois já inicialmente envolve dois gêneros literários ao mesmo tempo. O legado brechtiano pode ser visto nas várias manifestações do gênero dramático (que já não é somente dramático) hoje – teatro, cinema, televisão. E vários seguidores seus dilatam ainda mais sua experiência sensorial, como é o caso de Boal. Boal também promove interrupções no drama, através da inserção de momentos narrativos e musicais e, além disso, convida a plateia a participar fisicamente da encenação.
A performance de textos literários possibilita o tratamento de questões que, de outra maneira, jamais seriam observadas quando apenas lidas. Ainda que o texto preceda a encenação no contexto considerado, é através da performance que a ressemantização, a releitura, e a reconstrução de sentido são possíveis. Todos esses processos requerem contato profundo com o texto original para uma encenação efetiva. Ou seja, uma re-leitura é sempre posterior a uma leitura. Assim, por ocasião da encenação, pelo menos dois sistemas de signos são acionados: o do texto (signos verbais, sentido horizontal) e o da encenação (signos verbais, auditivos, gestuais), o que também pode ser chamado de empilhamento vertical (UBERSFELD, 2010, p. 13). Schechner e Boal salientam a importância da participação do indivíduo no processo educativo e de criação teatral, respectivamente. De fato a literatura só se torna objeto de discussão intensa se os leitores/ espectadores puderem penetrá-la, contextualizando-a. Além disso, discutem-na ao poderem compartilhar sua própria produção de sentido para ela ou, em outras palavras, sua própria interpretação, o que, no caso da encenação feita através de criação coletiva, pode ser negociada com os demais componentes do grupo.
A discussão que ocorre a partir da exposição da adaptação – ou tradução semiótica –também é motivada pela transferência do contexto da obra para o contexto de vida do leitor ou espectador, aplicando uma realidade literária, posteriormente também dramática, a uma realidade social. Conforme afirma Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa sobre os pensamentos de Renato Cohen: há uma dessacralização da arte e uma ritualização da vida (BARBOSA, 2011, p. 128). Há, portanto, um envolvimento profundo com a obra literária e a consequente divulgação dela através de sua nova interpretação.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Tereza Virgínia Ribeiro. Teatro, atos vitais e performance. In: Aletria, Belo Horizonte: n.1, v. 21, p. 121-132, jan.-abr., 2011. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1572. Acesso em: 02 de outubro de 2015.
BENJAMIN, Walter. Versuche über Brecht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1966.
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? In: Performance Studies: an introduction. 2nd edition. New York & London: Routledge, 2006, p. 28-51.
–; Icle, Gilberto; Pereira, Marcelo de Andrade . O que pode a performance na educação? In: Educação e realidade. São Paulo: n. 2, v.35, p. 23-34, 2010.
SCHUTZMAN, Mady (Org). Playing Boal: theatre, therapy, activism. London: Routledge, 1994.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Traduzido por José Simões. 1 ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
Érica Rodrigues Fontes é mestre e doutora em Literatura pela University of North Carolinaat Chapel Hill
(Publicado na edição#25, junho/julho de 2016)