Dizem que “antes de fazermos qualquer escolha, tudo é possível1”, mas a partir do momento que uma porta é aberta, todas as possibilidades restantes se perdem em meio as brumas do castelo de Avalon. Não há como voltar atrás, pois estamos em queda livre em direção ao futuro, seguindo inexoravelmente a fantasmática flecha do tempo que se desloca sempre para a frente. Quando Sir Gawain2 entrou na floresta negra e viu que o caminho dos outros cavaleiros já estava aberto, percebeu que ele não poderia simplesmente caminhar na mesma direção, porque não era o seu caminho, mas de um outro; decidiu, então, abrir sua própria trilha por entre a tenebrosa floresta – cheia de perigos e encantamentos – que o levaria ao Graal e curaria o rei.

Joseph Campbell3 costumava falar a seus alunos: “siga sua felicidade, ali onde você tropeça, lá estará sua bem-aventurança, e que a caverna que você teme entrar, é onde estará a força que você procura4. Campbell nos mostra que “o grande privilégio de uma vida é ser aquilo que nascemos para ser”, ou seja, que a Natureza nos modelou de acordou com seus desígnios, que cada um tem uma missão gloriosa na Terra, e que é nossa obrigação fazer da vida uma grande poesia, que ecoará nos céus e na terra, como a pegada de um gigante no deserto.

Em 1949, quando foi lançado O Herói de Mil Faces, Campbell estabeleceu os dezessete passos do herói, que poderiam ser resumidos em três: separação, iniciação e retorno, a base nuclear do monomito5. O heroi se encontra no mundo comum e recebe o chamado para se aventurar em regiões de maravilhas sobrenaturais. Uma vez atendido ao chamado, o herói precisará passar por provas, tentações, desintegrações do eu e encontro com monstros e fraquezas interiores para só assim se tornar o senhor dos dois mundos na totalidade da consciência. Sempre que atendemos ao chamado, um universo inteiramente novo surge, e onde antes só havia caos, uma flor começará a desabrochar, e todo o caos será obliterado por aquela única flor – a flor do herói – que traz um brilho celeste que unirá os dois mundos em um só além do céu e da terra.

Quando Luke Skywalker perdeu os tios, uma força propulsora o impeliu a seguir Obi Wan Kenobi, seu mentor sobrenatural, para combater as forças malévolas do Império. E que fabuloso universo surgiu quando ele cruzou o primeiro limiar em direção ao desconhecido! Sempre que o herói dá o passo em direção à aventura, a natureza se encarregará de armá-lo: mentores surgirão para aconselhá-lo e treiná-lo – Gandalf, Morpheu… – feiticeiras/os (às vezes monstruosas/os) lhe darão bálsamos curativos, criaturas estranhas o armarão com escudos e armas, e o dragão que prende a princesa, não será mais invencível, pois enquanto o herói se dirigia para a batalha final, a natureza se encarregou de prepará-lo pelo caminho. Ele vencerá o dragão-terror, libertará a princesa e voltará para trazer as boas novas a seu povo. Não há como dar errado6!

A aventura não será fácil. Dante, para ascender ao paraíso, teve que enfrentar bestas selvagens, desceu aos infernos e viu todos os tormentos do mundo, se purificou e, finalmente, pode reencontrar Beatriz. A jornada ao mundo do desconhecido é tão assustadora quanto encantadora. Os mais diversos perigos surgirão, não só externos, mas principalmente internos. É quando o herói é engolido pela baleia e encontra-se só como um Mefistófeles de si mesmo, oferecendo a ele mesmo todos os prazeres e trapaças do mundo para continuar na mediocridade da falsa vida. A metáfora da baleia representa o encontro assustador com nós mesmos, é quando o espelho da verdade reflete nossas sombras, nossos vícios e incoerências. O espelho da verdade reflete a bruxa, nossa bruxa, o minotauro do labirinto e nossos instintos mais grotescos. Quando Teseu entrou no labirinto para matar o Minotauro, ele estava fazendo a viagem ao seu próprio interior, mas não com o intuito de destruir o monstro injustiçado, mas de fazer as pazes com ele, de reconhecer seu lado negro: seu aspecto lunar como um ser completo que abarca tanto o bem quanto o mal, o claro e o escuro, mostrando que o casamento alquímico com nossos próprios monstros não é para nos assustarmos, porém para que possamos nos fortalecer como um ser senhor de si, como a poderosa imagem da carta-mundo do tarô, na qual vemos um super ser dentro do ovo cósmico – a serpente que come o próprio rabo, o uroborus – um ser andrógeno, masculino e feminino, lunar e solar.

A jornada do herói nos mostra que é função do homem criar uma alma7para seu receptáculo corporal, da mesma forma como faz Deus com Adão na clássica imagem de Michelangelo na Capela Sistina; ou como o beijo inocente do príncipe para despertar a princesa de seu torpor material. Criar uma alma significa fazer brotar o que há de melhor em você. É aceitar o chamado para a aventura e saber que cada pessoa é uma mitologia viva. Quando não aceitamos o chamado, os sonhos viram seus opostos, e tudo o que poderia ter sido, não será8. Nossos pais querem que tenhamos segurança e estabilidade, mas tudo que queremos é “ter a experiência de estarmos vivos9”. A aventura talvez não te traga dinheiro, mas te dará a maior história da sua vida: a tua própria história!

Na cidade de Teresina, no Piauí (e em outras cidades do Brasil), o índice de suicídio é enorme, a violência está aumentando e, com ela, o estresse e o medo se proliferam como mortos-vivos em seriados americanos. A sociedade parece estar alheia a si mesma e isso não é apenas perigoso para o próprio indivíduo – que vive na terra devastada10 de sua própria vida –, mas para toda a teia social. Um homem que não faz o que gosta, ou o faz por fins outros que não condizem com sua natureza, é como dar à luz uma hidra monstruosa que nem mesmo Hércules seria capaz de matar. Cada vez que você diz “não” a sua voz interior, é uma musa que morre no jardim das delícias ou uma fruta que apodrece, e é esquecida pelos animais.

Talvez essa seja a nossa única chance de viver a nossa própria mitologia, de combater monstros e leviatãs, se enamorar de sereias lúbricas, salvar princesas/príncipes que estão perdidos ou adormecidos na cama inautêntica da vida, de entrar em labirintos, ou de dançar com fantasmas em festas inexistentes, ou simplesmente olhar para um pôr do sol e contemplar, silencioso, o teu próprio rosto na criação. Aceitar o chamado não é apenas fazer aquilo que se gosta, mas se esquecer de si mesmo nesses momentos. A felicidade reside no nosso próprio esquecimento, quando vemos a vida como se fosse um grande balé, cuja coreografia não sabemos, mas mesmo assim dançamos, ignorando o tempo e suas vicissitudes.

Um mundo onde as pessoas sejam corajosas o suficiente para dizer “não” à vida que lhes foi imposta, é um mundo mais feliz, um mundo mais autêntico, é quando caímos no abismo que se abre da vida não chorando, mas fingindo que somos super-homens11; a mudança de perspectiva nos libertará! É chegar no final da vida com gratidão pela vida que teve, poder sentar e assistir a ópera da própria vida com satisfação e amor, e não alcançar o crepúsculo da velhice com arrependimento por tudo que não se fez. É saber que a vida é um grande milagre e que cada ser humano é único, uma poesia capaz de se ressignificar a todo instante, sempre com um brilho intenso em cada palavra. Seguir a trilha do herói é mais do que dizer “sim” a aventura, é ser o reflexo de Deus na terra, é seguir o caminho dos justos e só assim estaremos onde merecemos estar. E como diz Campbell, “Nem sequer teremos que correr os riscos da aventura sozinhos; pois os heróis de todos os tempos nos precederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos apenas que seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos com o mundo inteiro12.”

* Vinicius Macêdo Barreto de Negreiros

(Publicado na edição#27, outubro/novembro de 2016)

__________________________________

1 Frase de Mr. Nobody do filme de mesmo nome de Jaco Van Dormael, 2009.

2 Em A conquista psicológica do mal de Heinrich Zimmer. Editoria Palas Athena, 1999.

3 Estudioso norte-americano em mitologia comparada, 1904-1987.

4 Em A Joseph Campbell Companion: reflections on the art of living. Joseph Campebll, Harper Collins, 1991.

5 Em The Hero with a thousand faces. Joseph Campebll, New World Library, 2008.

6 Alan Moore em A Paisagem Mental de Alan Moore: <https://www.youtube.com/watch?v=xFiVo3dJLCs>.

7 Frase do escritor, cineasta e tarólogo Alejandro Jodorowsky com relação tarô no filme A Montanha Sagrada.

8 Em homenagem ao poema de Manuel Bandeira, Pneumotórax.

9 Em The Power of Myth. Joseph Campbell, 1988.

10 Ver poema The Waste Land de T. S. Eliot.

11 Como na música Hero de David Bowie.

12 Em O heroi de mil faces. Palas Athena, 2010.