Quando aportei em Teresina, na segunda metade da década de 1970, conheci o folheto Vida de Nordestino, assinado por João José Piripiri. Me afeiçoei logo aos quatro poemas daquela publicação: Vida de Nordestino, Sem saída, Vida de pobre e Tô avisando, em sextilhas que continham crítica social, ironia, bonitas imagens, linguagem simples, comunicação instantânea. Era literatura de cordel. Mas ninguém até então, ou seja, até lhe darem esse nome, conhecia-a como tal, mas como romance, folheto, ABC e outras designações. Apesar disso, literatura de cordel foi um nome que ficou. O IPHAN a reconheceu como patrimônio imaterial do Brasil.
De tanto ler e mostrar o folheto para outras pessoas, acabei perdendo. Perdi também o nome do ator que leu Vida de Pobre, em boa voz, sentado em um tamborete, no palco do Teatro 4 de Setembro, no espetáculo que marcou o lançamento da revista Humor Sangrento, de Arnaldo Albuquerque, editada por Cineas Santos, que agora me relembra que o ator era Francisco Augusto. Aquele folhetinho impresso em papel jornal, pela Editora Nossa, agora é raro. Felizmente, Cineas me deu um exemplar de presente. Sem medo de errar, transcrevo as estrofes iniciais que ficaram na minha memória:
“Pobre vive de teimoso”,
É o dizer popular:
quanto mais sofre mais rende
não há como controlar
parece peixe nascendo
nas profundezas do mar.
Morre um e nasce seis,
é a lei da compensação.
Só quem controla a pobreza
é o preço do feijão,
pois aumentar a família
é do pobre a diversão
Era uma época em que a inflação galopava, como se dizia, os índices de mortalidade infantil e analfabetismo eram muito maiores que os de hoje, e não havia programas como o bolsa-família e outros. A fome campeava. Era uma realidade que os poetas populares sentiam na pele e denunciavam na poesia.
A literatura de cordel (não gosto desse nome) foi e ainda é considerada por muitos como pequena tradição ou subliteratura. A grande literatura fica reservada para a escrita culta dos grandes escritores, ainda hoje desconhecida por extensa faixa populacional. Parece que sempre foi assim em muitos lugares, desde muito tempo.
O certo para mim naquele momento é que Vida de Nordestino me fez abrir mais os olhos para a poesia dos criadores populares, cantadores, violeiros, repentistas, que conheci nas feiras, antes de vir para Teresina. Nos cursos primário e ginasial, aquele tipo de produção não aparecia na sala de aula. Éramos obrigados a ler os textos impressos nos livros didáticos, entre os quais, Bilac, Alencar e a infalível Oração aos Moços, de Rui Barbosa. Meu pai, que adquiria bons produtos no mercado, onde todos compravam, nunca achou de levar para casa um romance de feira.
Passei a acompanhar autores como Pedro Gonçalves, que encontrei certa vez no Mercado Central de Teresina com o seu impagável A Fome da Era Atômica. Dele também é o ABC da Inflação, editado por Cineas Santos. E, claro, passei a ler tudo que levava a assinatura de João José Piripiri. Se não me engano, ele também publicou no Chapada do Corisco, experiência de jornalismo piauiense injustamente esquecida.
As sextilhas de Tio João, de João José Piripiri, foram feitas para o filme homônimo, com argumento e roteiro de Antonio de Noronha Filho, que também assina a direção, e Elda Area Leão Moraes e Silva. O cantador era Vicente Evangelista. Graças a Assaí Campelo e Carlos Galvão, vi o filme agora, no celular, o link enviado por Galvão. É um curta bonito, simples, forte. A narrativa é feita pelas imagens, pelos versos e pelo Hino a São João. Muita gente boa se uniu para realizar o filme. Além dos já citados, estão lá: Arnaldo Albuquerque (letreiros), Hamilton Castelo Branco (fotografia), Henrique Muller (auxiliar de fotografia) e Umberto Costa (montagem).
Tio João conta a história de João Batista, que viveu na cidade piauiense de Bom Jesus. Tal como seu xará, foi um grande devoto. O folheto e o filme se inserem em uma das temáticas da poesia popular nordestina: a história de vida de alguém que protagonizou um feito de importância comunitária, com vinculações religiosas e morais. Além de construir a igreja (“sem ajuda de ninguém”), Tio João fez a escultura de São João Batista em madeira:
Usando madeira tosca,
machado, enxó e facão,
construiu uma imagem
do padroeiro São João,
tão galante, tão perfeita
que causa admiração!
(…)
João Batista fez benditos
em homenagem a seu santo:
fez letra, música, arranjo,
coisa de causar espanto;
todo povo, comovido,
repetiu alto o seu canto.
O Julgamento do Doca (O Caçador de Panteras) é outro folheto de João José Piripiri (sem data) que se ocupa de um acontecimento que causou grande repercussão no País: a absolvição, em julgamento do júri, de Doca Street, assassino de Ângela Diniz, com quem teve um caso amoroso. A defesa coube ao jurista piauiense Evandro Lins e Silva, que usou a tese da “legítima defesa da honra”:
O Dr. Evandro Lins,
reconhecido orador,
bradava a todo pulmão:
“Doca matou por amor!”
o conselho de sentença
a tese estranha aceitou.
Por pouco Ângela Diniz
não foi da terra exumada,
para, em presença de todos,
ser agredida e xingada,
pois segundo o tal doutor,
era ela a única culpada.
O poeta conclui o folheto com uma estrofe que reflete uma prática arraigada no Brasil:
Neste país do futuro,
a coisa anda bem feia:
pobre, por qualquer bobagem,
pega cana e leva peia;
rico furta, mata, esfola
e não tem um na cadeia.
A literatura de cordel cumpriu muito bem o papel de divulgar notícias sobre fatos importantes, como guerras e crimes, sob a ótica do poeta popular, que se apresentava como comunicador, mas também como intérprete. O público cativo confiava nos poetas populares. Em entrevista ao escritor Orígenes Lessa, o poeta Rodolfo Coelho Cavalcanti, cujo primeiro folheto publicado foi Os clamores dos incêndios de Teresina, chegou a afirmar:
“O sertanejo sabe pelo rádio ou por ouvir dizer os acontecimentos importantes. Mas só acredita quando sai no folheto… Se o folheto confirma, aconteceu”.
Comparada aos poetas populares que dedicaram suas vidas ao cordel, a produção de João José Piripiri não é volumosa. Mas seus folhetos são de boa qualidade e refletem a existência de uma literatura com agudo interesse político e social, como são exemplos Vida de Nordestino, Tio João, O Julgamento do Doca, ABC da Ecologia, Viagem a São Siriá e A hora e a vez do trabalhador, que celebra o movimento pela criação do Partido dos Trabalhadores, numa época em que os ideais não haviam apodrecido.
Mas é com o 1º Manifesto Ecológico do Piauí, de 19/01/1980, que João José Piripiri mais intensamente coloca sua poesia a serviço de uma causa pública. Com dezoito sextilhas, o 1º Manifesto (não tive notícia do segundo) foi lançado na Praça Pedro II e no Teatro 4 de Setembro, com a presença maciça de estudantes. Como não poderia deixar de ser, aquele manifesto lamenta a situação do nosso principal rio:
Quanto ao Rio Parnaíba,
que margeia a capital,
já não inspira os poetas:
corre lento, cheira mal;
ganhou mais um afluente:
o esgoto do hospital.
E do interior do Estado:
No sertão do Piauí
a coisa está bem ruim:
onde existia floresta,
hoje é roça de capim;
amanhã é capoeira,
onde só vive cupim.
(…)
Estão destruindo tudo,
matando paca, tatu,
veado, onça, raposa,
preá, mocó, caititu;
bicho de pena só escapam:
espanador e urubu.
Quem teve participação ativa no 1º Manifesto foi, entre outros, o poeta Salgado Maranhão, que na época estudava Comunicação no Rio de Janeiro e participara da coletânea Ebulição da Escrivatura. Salgado fez o público vibrar, falando poemas da série Dos trapos coração, em que se nota a vida no fio da navalha e a cadência de quem aprendeu com a poesia popular:
Minha alma são varais de panos coloridos,
Fraldas de crianças estendidas
Ou quintais de milho verde.
Mas sei perfeitamente quando penso
Que o que me põe feliz e aventureiro
Pode me levar aos ares,
De repente,
Voando no coice de uma bala
Queiram ou não, a poesia popular continua na (des)ordem do dia. Na semana passada, por exemplo, o poeta, DJ e produtor musical Clécio Rimas, de Tabira (PE), esteve em Teresina, ministrando a excelente Oficina de Criação Literária Cordel, Embolada, Repente e Rap. Dos oito participantes que iniciaram, dois chegaram ao final.
Nos últimos anos, o mais famoso criador e divulgador da literatura de cordel entre nós foi Pedro Costa. Durante mais de vinte anos fez circular a revista De Repente, criada em 1994. Em 2010, a Universidade Federal do Piauí publicou o livro Poemário de Cordéis, reunindo dezenas de folhetos do poeta. Mas ele não gostava da palavra cordel. Por isso escreveu:
Vamos tirar de vez
Esse nome do papel
Que deram à literatura
Escrita por menestrel
Escrevi vários folhetos…
Mas nunca fiz um cordel.
Quanto ao João José Piripiri, não sei por onde anda, não faço ideias. Quem quiser saber, pergunte ao Cineas.
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Link do documentário Tio João
https://drive.google.com/file/d/1_tplcscqa5G8-IRhJDB1OQ0woSrn5ufx/view?usp=sharing
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Rogério Newton é escritor e crítico da cena cultural.