Numa carta do poeta João Cabral de Melo Neto para Clarice Lispector, datada de 08.12.1948, ele lhe pede que ceda seu Coro de Anjos para uma pequena edição na Livro Inconsútil (pequenos livros que João Cabral fazia porque um médico lhe receitara, como tratamento fisioterapêutico, que dedicasse um tempo a trabalhos manuais, assim decide imprimir livros numa prensa manual). Depois, avisa a Clarice que vai lhe enviar a “Pequena antologia Pernambucana”, o livrinho que fez com poemas de Joaquim Cardozo. E anota: “Conhece V. a poesia de Cardozo? Soube que publicaram há pouco, no Rio, suas poesias completas, arrancadas do autor, que nunca publicara livro, e baseadas em textos ‘fixados e estabelecidos’ pelo poeta e por mim, quando estava no Rio (o poeta não tinha cópia de nenhum poema; e assim, meu trabalho foi: pedir aos amigos as versões que possuíam e submetê-las à memória do poeta que as corrigisse). Pois desses textos, num momento de añoranza da luz recifense, escolhi os mais diretamente pernambucanos e organizei-os numa antologia que estou imprimindo. O próprio Cardozo não sabe de nada, nem da estrutura que dei ao livro (um tanto especial) nem do próprio livro. A ver se lhe agradará.” 

 

O desejo de João Cabral em editar a poesia e todo o trabalho do também pernambucano Joaquim Cardozo tem a ver, diretamente, primeiro com a importância que lhe atribuía como uma primeira referência à sua poesia e, depois, com pauta do pensamento sofisticado e silencioso desse engenheiro calculista, poeta, dramaturgo, crítico de arte, de poesia e de arquitetura. Pensamento marcado por uma linha de variantes intensa que pode fazer o caráter pedagógico, institucionalizado e hierárquico das leituras já cumpridas do modernismo brasileiro se mover para outro lugar [modernismo muitas vezes meramente localizado em São Paulo por circunstâncias econômicas, logo culturalmente centralizadas numa única ideia de civilização anulando outros móbiles, como os que aconteceram no Ceará e como o que acontecia em Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre etc.]. Imaginar modernismos mais díspares, mais pantanosos, mais próximos da alucinação do cálculo matemático, de uma memória fabulosa ou de problemáticas mais plurais. 

O pensamento silencioso de Joaquim Cardozo é um móbil incessante que nos lança sem parar diante desse momento em que estamos, um “tempo de alarme”.

Num desvio de propósito, uma espécie de baixa sedução e um dispêndio, seguindo aqui as proposições de Georges Bataille, Joaquim Cardozo ajustava sua postura política a um gesto radical entre modesto e lúcido, como disse dele o arquiteto Oscar Niemeyer na revista Módulo, em 1961: “… o trato ameno e simples do homem inteligente – Cardozo é o brasileiro mais culto que conheço – incapaz de impor uma opinião com a intransigência das coisas irrefutáveis, apresentando-as sempre como sugestões pessoais, que julga justas e convenientes.” E, mais adiante, acrescenta: “o homem simples que se situa, modesto e lúcido, diante do mundo transitório em que vivemos (…).” João Cabral, ciente de tudo isso, manteve o desejo de publicar uma espécie de obra errante, porque sempre incompleta, de Cardozo, até bem perto de morrer. 

Duas referências a esse apontamento: 1] Maria da Paz Ribeiro Dantas, certamente uma das pesquisadoras mais pertinentes do trabalho e do pensamento de Joaquim Cardozo, autora de 3 livros sobre o trabalho dele como poeta e um pensador para o futuro, exatamente por causa da relação tensa que arma entre o poema e a matemática, a cultura e a física, a astronomia e a alegria etc. E 2] Everardo Norões, poeta de dimensão erudita e alucinatória, que concentrou imensos esforços para a organização do volume tão sonhado por João Cabral. A edição saiu em 2009, equivocadíssima, pelas editoras Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, e Massangana, de Recife, com o apoio da Fundação Joaquim Nabuco: sem o nome de Everardo Norões, o organizador, e outras várias questões, como a ausência das seis peças de teatro, bumbas, que Joaquim escrevera também num desenho vertiginoso a partir das assombrações míticas do sertão nordestino e do cálculo matemático. À época, escrevi um longo texto para o caderno Ideias, do Jornal do Brasil, quando o editor do mesmo era Rodrigo de Almeida, cobrando um melhor tratamento ao trabalho de operário com o pensamento que Everardo fizera, até como uma formulação respeitosa a Maria da Paz, que veio a falecer em seguida. Assim, a edição foi recolhida e em 2010 publicou-se uma reedição do livro apresentando algumas correções, como o nome do organizador, agora indicado, mas ainda sem o teatro e com o título de Poesia completa e Prosa. 

Em que pese o falseamento absoluto promovido pelas estratégias de mercado, logo, do capital, em torno da ideia de “obra completa”, um contrassenso, tanto pelo substantivo monopolizador, o de “obra”, quando pelo adjetivo mortificante, “completa”, expressão que retira a modulação que engendra um pensamento de trabalho, com um trabalho, mas que é ainda muito usual ou, mais severamente, num contraponto, muitas vezes num modo preguiçoso, a organização de antologias que funcionam como mapa, ou seja, controle e poder, em torno da composição delicada e forte da composição de uma vida com um trabalho. 

O que fica, desse conjunto reunido, agora, 10 anos depois, é que o pensamento silencioso de Joaquim Cardozo é um móbil incessante que nos lança sem parar diante desse momento em que estamos, um “tempo de alarme”. Ele mesmo disse: “Ninguém se lembrou que o silêncio pode ser uma energia ainda desconhecida e que sua concentração pode, ou se abafar inteiramente, ou explodir; (…). Ou mesmo, quem sabe, fora a própria materialização do silêncio. Se não a explosão, a implosão do silêncio.” É com esse propósito à política que se pode imaginar a circunvolução de um pensamento que tende à vulnerabilidade, aquilo que nunca está pronto ou acabado, logo, nunca está “completo”, e que se constitui por um estado danificado, destruído em si: uma construção oscilante, sem nome, território ou língua, para a destruição da destruição, tal como imaginara Walter Benjamin em seu Caráter destrutivo. Isto converge, primeiramente, à expressão forma-formante, que é um conceito essencial no pensamento de Joaquim Cardozo: esta ambivalência oscilante da forma que se abre e se expande por meio do esforço, quando esforço é aquilo que vem num engendramento [imaginar, engenhar, inventar] da teoria da deformação, porque no cálculo estrutural tudo é feito para que não se deforme nem deforme o real daquilo que constrói; Joaquim entende que esforço é um “estágio da experimentação em que o corpo se deformando começa a deformar, por sua vez, o corpo deformador.” 

Platão, no Timeu, comenta que o céu é esférico, que todos os pontos extremos do universo teriam uma mesma distância para um suposto centro que, por sua vez, manteria também uma distância e uma mesma medida com todas essas extremidades. O cosmo, para Platão, como uma imagem móvel da eternidade, está constituído assim numa dimensão de extremos, e qualquer tentativa de mensurá-lo se apresenta como descabida, inadequada. O universo não tem centro, e isto é político e interessa muito a Joaquim Cardozo, uma geodésica do mundo da qual o tempo faz parte: uma linha que cobre uma superfície, uma curva cuja normal principal coincide, em cada ponto, com a normal a essa mesma superfície. 

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou Pasolini: retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa), Avião de Alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015), entre outros. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios (Lumme Editor).

***

Publicado na Revestrés#47. 

 Compre esta edição avulsa e receba em qualquer lugar do Brasil: www.revistarevestres.com.br 

LEIA AQUI A REVESTRÉS#47 COMPLETA

BAIXE AQUI A REVESTRÉS#47 EM PDF 

💰 Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente. Apoie nossa campanha no Catarse, a partir de R$ 10,00 (dez reais): catarse.me/apoierevestres