“Lucien Febvre costumava dizer: ‘a história é o homem’.
Eu, por outro lado, digo: a história é o homem e tudo mais.
Tudo é história: solo, clima, movimentos geológicos.”
Fernand Braudel
Na década de 1960, os problemas ambientais no mundo deixam de ser preocupação apenas de ambientalistas, de cientistas e de alguns estudiosos e interessados no assunto para assumir papel de destaque na agenda dos estados nacionais. O poder público foi despertado pela catástrofe africana representada por um longo período de seca (1967-1973) na região semiárida do Sahel, o que levou a ONU, entre outros eventos climáticos extremos, a convocar a sua primeira conferência para tratar dessa temática em Estocolmo, na Suécia (1972).
No campo da história, no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970 surge uma nova geração de historiadores preocupados com a emergência da crise ambiental. A História e o Meio Ambiente começam a formar um novo campo na historiografia nos EUA, de forma pioneira, expandindo-se posteriormente para a Europa e chegando ao Brasil no final da década de 1980.
Não se trata de contar a história da natureza ou da ecologia, mas sim de estabelecer uma relação dialética entre a sociedade humana e os ambientes em que viveram ao longo do tempo e quais transformações produziram ao meio e em que medida o uso dos recursos naturais influenciou a constituição de determinadas sociedades. Para o historiador norte-americano Donald Worster (1991, p. 201), “a história ambiental trata do papel e do lugar da natureza na vida humana”.
Segundo Drummond (1991, p. 194), a historiografia “tem sido incapaz de esclarecer exatamente os tipos de sociedade gerados pela exploração de um recurso natural ou de vários recursos simultaneamente, ou de vários recursos em sequência”. Isto é, o objetivo da história ambiental “seria identificar, em escala regional e local, que tipos de sociedade se formaram em torno de diferentes recursos naturais, que permanência teve essas sociedades e que tipo de consequências elas criaram para os seus ambientes sustentarem outros tipos de sociedade”.
Para Carvalho (2004), uma das principais contribuições da história ambiental está na preservação da memória, ou seja, as pesquisas das relações dos homens com os ambientes em que viviam, e o uso que faziam e fazem dos recursos naturais disponíveis, podem contribuir com a sociedade atual, além de possibilitar conscientização sobre a necessidade do uso racional e sustentável dos ativos ambientais, com vistas a evitar que os erros do passado possam se repetir no presente e no futuro.
Nesse sentido, destaca-se o trabalho do historiador norte-americano Warren Dean (1996, p. 379) sobre a “devastação” da Mata Atlântica no Brasil, pois atualmente só resta cerca de 10% de sua cobertura original. Ressalta o autor que o conhecimento desse passado pode ajudar a preservar outros biomas, como a Floresta Amazônica, por meio do questionamento: “não deveria esse holocausto produzido pelo homem ser relatado de geração para geração?” E ainda arremata: “não deveria o manual de história aprovado pelo Ministério da Educação começar assim: ‘crianças, vocês vivem em um deserto; vamos lhes contar como foi que vocês foram deserdadas’”.
Todavia, Pádua (2010, p. 97) nos chama a atenção para o fato de que não se pode julgar as gerações passadas utilizando conceitos e valores atuais, o clássico equívoco do “anacronismo”, como costumava dizer o mestre Fernando Novais. Nessa perspectiva, salienta que:
[…] A história ambiental, como ciência social, deve sempre incluir as sociedades humanas. Mas também reconhecer a historicidade dos sistemas naturais. O desafio, repetindo, é construir uma leitura aberta e interativa da relação entre ambos. Tal postura aberta deve significar, em sentido fundamental, o abandono da visão catastrófica e do “homem devastador” que a voz das ruas costuma exigir. […] No sentido mais profundo, o desafio analítico é o de superar as divisões rígidas e dualistas entre natureza e sociedade, em favor de uma leitura dinâmica e integrativa, fundada na observação do mundo que se constrói no rio do tempo.
Na mesma perspectiva de Pádua (2002; 2010), Duarte (2005, p. 32) enfatiza a importância de “[…] compreender a historicidade das relações entre a sociedade e a natureza pode, certamente, dar-nos instrumentos para assumir uma postura mais crítica frente aos debates sobre o ambiente”. Patenteia que a relevância do conhecimento histórico evidencia que “tornarmo-nos mais capazes de perceber […] tanto as falácias do desenvolvimento como as idealizações autoritárias de algumas propostas ecológicas ditas ‘alternativas’”.
Com base nessa compreensão, concorda-se com a assertiva de Worster (1991) de que os homens provocam “mudanças” e não “danos” ao ambiente.
Importante destacar que, no caso do Piauí, temos uma obra pioneira na perspectiva da história ambiental. Trata-se da tese de doutorado de Gercinair Gandara (2009, p. 43-44) sobre o Rio Parnaíba e a sua relação com a formação da sociedade piauiense, particularmente com as populações das cidades que foram fundadas nas margens do “Velho Monge”. Para a autora, foi esse recurso natural e esse curso d’água “quem propiciou a povoação em suas beiras. Ele foi/é via regional que transporta(va) mercadorias, pessoas e, consequentemente, suas representações […], suporte material com função de ligar, unir espaços e gentes”.
Sendo assim, acrescente-se, em conformidade com Drummond (2002, p. 30), que:
a comunidade de cientistas sociais e afins precisa estudar melhor e incorporar analiticamente as variáveis biofísicas, superando um receio infundado de sucumbir a “determinismos” naturalistas, trilhando os caminhos abertos por alguns clássicos de nossas disciplinas, como Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Holanda. Esses caminhos ficaram abandonados por muito tempo e precisam ser desbravados “a facão”, para dar acesso à “fronteira” ainda inexplorada dos estudos socioambientais.
Portanto, a história ambiental tem caráter interdisciplinar, por requerer o diálogo sistemático com as demais ciências humanas e naturais, no sentido de romper com o falso dualismo entre homem x natureza, ilustrando e fortalecendo a complexa análise das relações da humanidade com a o espaço geográfico onde viveram as sociedades ao longo do tempo.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, E. B. A história ambiental e a “crise ambiental” contemporânea: um desafio político para o historiador. Esboços, Florianópolis, v. 11, n. 11, p. 105-117, 2004.
DEAN, W. A ferro e fogo: A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DRUMMOND, J. A. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 177-197, 1991.
_______. A. Por que estudar a história ambiental do Brasil? Ensaio temático. Varia História, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 13-32, jan. 2002.
DUARTE, R. H. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
GANDARA, G. S. Rio Parnaíba … Um cadinho de mim e a história ambiental. Textos de História, v. 17, n. 1, p. 39-57, 2009.
MACAMBIRA, D. M. A História Ambiental e o processo de desertificação em Gilbués (PI). Informe Econômico: Ano XIX, n. 36. Teresina, EDUFPI, 2016, p. 44-50.
PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
_______. As bases teóricas da história ambiental. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 81-101, São Paulo, 2010.
WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Tradução de José Augusto Drummond. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 198-215, 1991.
(Publicado na Revestrés#34 – janeiro-fevereiro de 2018)