A fotografia, como a ficção científica, cria possibilidades de pensarmos outros mundos a partir do mais prosaico do cotidiano. Outros mundos são montados e desmontados, fabricados, recortados, enquadrados, desenquadrados através da caixa preta da fotografia. Álbuns de família, retratos dos filhos, imagens de férias, fotografia “de” arte – toda uma maquinaria que transpassa, perfura, invade e, antes de especular ou encerrar um “real”, quer chamem de ficção ou simulacro, produz-cria- fabrica mundos, memórias e vidas. Ficção em mundo saturado pela imageria e cadeias semióticas do poder, há uma necessidade urgente de ficcionar e friccionar cada vez mais. Um pouquinho mais, sempre no limite, nos limiares do visível e do dizível. De todo modo, que grande ficção seria isso que chamamos, tão categoricamente, de real. Para um exemplo rápido, diversas populações que não vivem sob o signo “ocidêntico” da representação, como os indígenas, habitam mundos “reais” que divergem consideravelmente dessa cadeia de mesmidade que fomos encarcerados pelas diversas máquinas de poder – os controladores dos enunciados e suas cadeias enunciativas. O déspota da significação contra o nômade que desliza entre linhas, signos e segmentaridades.
Como diria Deleuze: Não se trata de responder ao real e sim de fabricá-lo. Máquina-humana que se acopla com a Máquina-caixa-preta, para um devir-outro, nem coisa, nem humano. Um além, uma marca na superfície do mundo que perfura enunciados, modos de dizer, modos de existir, modos de lembrar, modos de pensar, modos de imaginar. A fotografia como uma linha de fuga do espetáculo das imagens clichês, das imagens que se repetem como soldados em marcha – marcha sob o poder da língua do soberano. Uma produção fotográfica silenciosa e no extremo de uma lentidão atravessada por velocidades e intensidades absolutas. Alguma coisa sem nome, sem representação, sem finalidade. A fotografia como puro dispêndio e destruição da noção-moral ocidental da imagem como reflexo do mundo. A fotografia como coisa que cria mundos, como mais uma ficção que abre rasuras e fendas na soberania das coisas bem-ditas, bem-lidas, bem-alinhadas. Um pouco de mal-ditos, mal-vistos, desalinhos e desvarios; para não sufocarmos no espetáculo cinza da alta resolução. Por um cromatismo generalizado da ficção fotográfica, menos um compromisso com o real da representação, mais uma aliança intensiva com a criação intensiva de mundos, modos, práticas – com a imanência da vida, para não faltar mais um pouco de Deleuze no final desse texto.
*Igor D. é historiador/Uespi e doutorando em Antropologia/Ufmg
(Artigo publicado na Revestrés#30 – Abril/Maio 2017)