Desde o dia 13 de março é o que estamos tentando obedecer por aqui, nessa casa de porta azul para onde nos mudamos em agosto do ano passado, no gelado estado de Massachusetts, nos EUA. Meu trabalho como professora visitante na Worcester State University foi todo adaptado, às pressas, para o ambiente virtual. As aulas dos meus filhos mais novos, que estão aqui comigo, também. O mais velho, universitário em Minas Gerais, tomou o rumo de Teresina assim que percebemos que a república em que morava não seria exatamente o melhor lugar para uma quarentena. E assim seguimos. Ele lá e nós cá, nessa casa de porta azul, que escolhemos um pouco na pressa e um pouco pela cor da porta (quem assistiu Notting Hill sabe do que estou falando).

 

Stay home, repetem nos telejornais e, mesmo ficando em casa, sei que obedeço a ordem apenas em parte, porque essa casa não é home, não é lar pra mim e meus filhos. Nem é essa cidade fria, que em março começava a se despedir de um inverno com temperaturas de até -15 graus C, e cuja primavera observamos agora apenas pela janela. Das muitas saudades acumuladas nesses nove meses em que estamos aqui, algumas se sobressaem nos últimos dois meses de confinamento: nossa “casa muito engraçada”, com meus livros espalhados por estantes por quase todos os cômodos, minha cozinha aberta pro quintal onde eu recebia amigas e amigos, minha porta sempre aberta, cuja chave perdi há anos, o piano que eu mal toco, mas que tem o carinho de um pai pra uma filha que fazia 12 anos. O barulho e o cheiro da minha casa em Teresina. Os quadros e fotos nas paredes. A cachorra e os gatos. O pé de acerola. O enorme bougainville cor de rosa.

Nós viemos pra voltar, porque sabíamos que tínhamos pra onde voltar. Essa é a décima cidade em que moro na vida, e o combinado, como sempre, era voltar. Continua sendo esse o combinado, ou pelo menos a esperança. Mas a pandemia nos encontrou aqui e nos trancou nessa casa que não é lar, nesse país que não é o nosso.

Tentamos às pressas construir cantos pela casa, fazer com que ela tenha nossa cara – essa casa temporária, com sua porta azul e sua escada íngreme na entrada. “São os projetos que nos salvam a vida”, me disse um amigo sábio anos atrás. Começamos, então, eu, Zé e Tonton, a reformar o sótão com nossas próprias mãos. OK, reformar é modo de dizer. Mas o sótão ali ocioso, sem poder ser utilizado nos longos meses do inverno, e agora que a temperatura começa a subir e estamos os três em casa, pra quê projeto melhor? E lá fomos nós a arrancar tábuas pra liberar escada, a carregar sofá escada acima, a limpar tapete, a encher colchão inflável, a estudar um local pra botar uma rede. Vamos até puxar a rede elétrica, imagina!

Não sabemos quando será seguro voltar pro Brasil, então nos conformamos em transformar essa casa em mais que um abrigo temporário. Plantamos uma horta, além de várias plantas decorativas, três bonsais e um terrário. Estamos tentando adotar um gato, mesmo que pareça uma traição com Mabel e Clóvis, que nos esperam em Teresina. Dividimos as tarefas domésticas, cada semana um lava o banheiro, cada dia um cozinha, e temos tido agradáveis surpresas culinárias, e alguns desastres memoráveis, por aqui.

Nem sempre conseguimos controlar a ansiedade e a tristeza. Como mãe, achei que deveria manter uma fachada de força e sabedoria. Essa se foi quando o proprietário da casa, e nosso vizinho, veio até aqui perguntar se por acaso tinham aparecido ratos por aqui. Veja bem, eu não tenho medo de nenhum bicho e nenhum ser vivente ou do além. Com exceção de ratos. Essas criaturas são outra categoria de assombração. A função única deles no mundo é nos mostrar o tamanho da nossa fragilidade. Perdi as estribeiras só com a possibilidade de um rato – ou uma família inteira! – estar coabitando conosco. Chorei, dei escândalo, quis ir pra um hotel e virei apenas motivo de chacota entre meus três filhos. Desse dia em diante entendi que não dava mais pra fingir e tive que abrir o jogo: não sei quando vamos pra casa, não sei quando será seguro, não sei se estamos de fato seguros, não sei quando a quarentena acaba, não sei se viveremos ainda meses ou mesmo anos isolados, não sei se passaremos o natal com a vovó, não sei quando vocês vão poder abraçar o papai, não sei quando abraçaremos a Zelda, não sei quando estaremos os quatro juntos – eu, Pedro, José e Antonio – na nossa casa, de novo.

Mas, por via das dúvidas, instalei na cozinha um dispositivo elétrico que supostamente espanta ratos. Porque essa casa é minha, da minha família, pelo tempo que for necessário. E não tem rato nem pandemia que vá nos impedir de nos sentir em casa até a hora de poder partir.

Clarissa Carvalho é professora de Jornalismo da UESPI, jornalista e mãe. Está como professora visitante na Worcester University, em Massachusetts, EUA. @clarissascarvalho

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