“Ora, andava ali, pastando no monte, 

uma grande manada de porcos; 

rogaram-lhe que lhes permitisse entrar 

naqueles porcos. E Jesus o permitiu. 

Tendo os demônios saído do homem, 

entraram nos porcos, e a manada 

precipitou-se despenhadeiro abaixo, 

para dentro do lago, 

e se afogou” (Lucas, 8, 32-6). 

 

O tríptico de Hieronymus Bosch, “O Jardim das Delícias” (1480-1490), é uma ótima metáfora de Epimeteu ou o moderno pensador: aquele que pensa depois. Mas o que vemos nas pinturas ultracoloridas e aparentemente nonsense de Bosch? No primeiro dos quadros, “O Paraíso”, em primeiro plano, Deus apresenta Eva a Adão, mas o que chama a nossa atenção são os animais bizarros que parecem sair de um poço escuro e asqueroso – não se sabe se do inferno, do inconsciente ou da caixa mágica de Pandora – para infestar o sanctum locus com suas bestialidades, doenças, invejas, profanações e pensamentos tortos. 

Em segundo plano, uma fonte estranhíssima localizada no centro de um rio e habitado por uma única coruja convida nossos olhos a focarmos nela por alguns segundos: que mistério habita a enigmática fonte? E a coruja? A coruja de Minerva só alça voo a tarde, no entanto, ainda não é o crepúsculo, a humanidade-Epimeteu segue dormindo em sua alvorada inocente (e inconsequente). Ao fundo, animais fabulosos e “montanhas-árvores” de um in illo tempore sem igual compõem a atmosfera quimérica desse paraíso renascentista. E bem ao fundo, um céu povoado por criaturas noturnas e delírios diabólicos anunciam o prelúdio da queda do homem. Epimeteu já abriu a caixa! 

Depois que Epimeteu abriu a caixa de Pandora, constatamos no tríptico segundo, “Danações Terrenas”, que a humanidade-Epimeteu, ingenuamente, celebra os vícios, a carne e Dionísio, a feiura e a ignorância. A imagem é um mosaico epicurista elevado a máxima potência. Todos os pormenores do quadro parecem conduzir Epimeteu ao “aproveite o dia” dos poetas românticos e bucólicos; afinal, Deus está morto! Mas, curiosamente, no centro esquerdo do quadro, um homem sentado sobre o dorso de um pássaro de cabeça vermelha, mostra-se aflito, pensativo. No que pensa esse pequeno Epimeteu? Na nostalgia do paraíso ou numa premonição escatológica para a humanidade? Ele está arrependido ou apenas se recompondo para mais uma noite de vinho e ultrarromantismo, tavernas e prostitutas? O fato é que esse insignificante Epimeteu, taciturno e melancólico, contrasta e oblitera de forma intensa todos os outros personagens. Essa figura é ciclópica, é o eco de Ninguém. Esse proto-pensador de Rodin pensa no Inferno… e o teme. 

A tese de que esse pequeno Epimeteu pensa no inferno é confirmada com o terceiro quadro, “O Inferno Musical”. No primeiro plano vemos animais similares àqueles do paraíso e outros ainda mais asquerosos e hediondos. As punições são as mais variadas e terrificantes: desde uma criatura-pássaro que, sentada num trono estranho e com um caldeirão de bruxa na cabeça, devora e defeca humanos numa fossa de merda e vomito numa intensa antropofagia delirante, até um coelho-demônio que carrega um homem espetado numa lança na ânsia de cozinhá-lo mais tarde. Mais acima, instrumentos musicais servem como máquinas de tortura, enquanto uma ópera escrita nas nádegas de um homem qualquer1, preenche de som o vale dos condenados. Se fecharmos os olhos é possível ouvir toda a sinfonia do coro dos malditos: gritos, gemidos, pedidos de misericórdia, ecos e balbucios, lamentos e frases sem sentido; notas sem Sol, apenas Si, o Si-Mesmo invertido de Jung, o Si de Sísifo e o peso incomensurável de sua pedra. E indiferente, prostrado no centro do quadro, a mais bizarra de todas as criaturas: o “Homem-árvore-Epimeteu”, aquele que olha para fora do quadro – mirando-nos piedosamente – na vã esperança de um dia poder sair desse temível inferno nauseabundo. 

Aquele pequeno pensador boschiano, solitário e melancólico, que está sentado sobre o dorso daquele estranho pássaro, parece ter antecipado (ou inspirado) brilhantemente o “pensador moderno brasileiro”; e com certeza, “Abaporu” (1928), de Tarsila do Amaral, é a imagem viva, em proporções titânicas, da queda do homem e de seu pensamento em “estado de sufixo”: “aquele que come”, é comido e depois descartado como excremento no submundo da solidão, análogo a criatura-pássaro de Bosch, que come e defeca asquerosamente Epimeteus incautos e ingênuos. 

“Só a antropofagia nos une”, diz um trecho do Manifesto Antropofágico. A imagem de Tarsila, com sua criatura acéfala, sem boca e com seu pé gigantesco, que mais lembra os Ciápodes2, parece ser puxada de forma dramática para o chão, totalmente presa à matéria dos vícios e da carne. A criatura também parece pensar. No que pensa esse pobre Epimeteu? Onde estão seus olhos, sua boca, sua alma? Tudo é seco: não há roupas, não há frutas, não há nada, somente um sol implacável, sublime, que lembra o fogo do Inferno, a solidão e a modernidade que tudo devora. É a negação total, algo mefistofélico: aquele que tudo nega e que tudo fala (sem pensar). Silêncio! A maçã da bruxa e o torpor na matéria. 

Infelizmente, Prometeu ainda está acorrentado… e tudo que ouvimos é o eco lancinante dos gritos do herói pelas atitudes e pensamentos inconsequentes de seu irmão Epimeteu, que abriu a caixa proibida, liberando um panteão monstruoso e assemântico de atitudes e ideias no reino podre dos homens, estes mesmos homens hamletianos que possuem pernas, mas não conseguem andar, apenas atuam no palco da bestialidade: homens em estado de sufixo e enraizados na metalinguagem carcomida da matéria… “Quando escutarei a minha própria voz além desta vã filosofia?“ Indaga o epimeteu-poeta ainda tropeçando nas próprias palavras gigantes e pedregosas que encontra no caminho, cujos significados já não mais compreende. 

Assim, estes dois pensadores antropofágicos e melancólicos, Epimeteus boschianos e tupiniquins, seguem pensando. Mas no que pensam? Nunca saberemos. Mas parecem, ambos, sentir nostalgia do paraíso da mesma forma que sente o romântico Anjo de Dürer, pois tudo indica que foram expulsos do sanctum locus em troca da devassidão antropofágica e da super sinestesia hipertrofiada dos tempos modernos; agora, os dois, arrependidos pensadores, estão com suas cabeças voltadas para o chão como um porco, espírito de porco, schweinegeist, abismo! 

Le Poète est semblable au prince des nuées Qui hante la tempête et se rit de l’archer; Exilé sur le sol au milieu des huées, Ses ailes de géant l’empêchent de marcher. 

 

 

O poeta é assim como esse rei dos ares 

Que frequenta a borrasca, do arqueiro a zombar; 

Exilado no chão entre chistes vulgares, 

As asas de gigante impedem-no de andar3. 

 

1 Milan Kundera em seu livro “A Insustentável Leveza do Ser” diz que a feiura do mundo começou com a música. Será que a inspiração das músicas modernas vieram dessa imagem infernal? 

2 Criaturas bizarras que no calor do dia deitam no chão de costas e, com seu pé hipertrofiado, protege-se do sol fazendo sombra para si mesmo com seus próprios enormes pés. Em A História da Feiura de Umberto Eco, Editora Record, p. 121, 2014. 

3 Trecho do poema “O Albatroz” de Charles Baudelaire. Tradução de Mário Laranjeira. Martin Claret, 2011, p. 30. 

(Publicado na Revestrés#34 – janeiro-fevereiro de 2018)