É quase noite quando minha mãe, Irismar Cantanhêde Frota (56 anos), chega em casa. Nada de abraços em seu unigênito e beijos no marido. Entra no quarto, troca de roupa, mas continua enfermeira após colocar o jaleco branco na lavanderia. Não pode culpar a pandemia. Assim tem sido desde que aceitou coordenar a equipe de enfermagem do Hospital Geral de Lima Campos, Maranhão. Os dias não são os mesmos diante da ameaça de uma tal Covid-19, mais próxima do que nunca. O celular toca inúmeras vezes. Alguém não está bem e todas as suposições desaguam no Coronavírus, mas enfermagem é ciência. Há um rito a ser seguido: entre os sintomas e o resultado do exame existem protocolos, o teste, cinco horas de estrada em uma BR com pontos intrafegáveis rumo a São Luís e, no mínimo, sete dias de espera.

 

“O paciente dá entrada no hospital, passa pela recepção, preenche uma ficha e depois é encaminhado para a triagem. Em seguida o médico faz a avaliação dos sintomas. Se forem compatíveis com os da Covid-19 solicitará o teste e encaminhará o paciente para isolamento nos leitos disponíveis, sendo acompanhado por uma equipe até a chegada dos exames”, explica Irismar.

Ouvindo-a em diálogo com uma das técnicas de plantão, é possível ter ideia do tamanho do desafio que as cidades pequenas já enfrentam em meio a uma realidade nova (o vírus) e problemas cotidianos.

O desconhecido impõe temor até mesmo em Irismar, que, desde os 13 anos de idade, passou a ter como companhia a rotina hospitalar. Mulher negra, decidiu frequentar hospitais quando entrar na universidade era coisa de branco e o sonho de se formar era impossível para os Cantanhêde.

Recordo-me de uma das muitas conversas de calçada com vó Francisca das Chagas sobre sua filha. “‘Menina, o que diabo é que tanto olha pra essas muié, que cai até dentro do esgoto?’Aí ela disse: ‘Oh, mãe! Mas acho tão bonito essas muié tudo de branco. Quando crescer venho trabalhar bem aqui, nesse hospital (antiga Casa de Saúde do Dr. Carlos Melo) e vou vestir uma bata (jaleco) dessas’. Eu pah (tabefe). ‘Bora! Deixa de tá conversando besteira, bicha, tu tá é variando’. E ela: ‘a senhora vai ver!’”. O diploma veio em 2014, mas bem antes disso jogou-se de cabeça na prática.

Em dias tensos como esses, a casa, que costuma varrer todas as noites, fica em segundo plano. Nada de “vivemos esperando dias melhores” para deixar a noite mais leve. É o silêncio que impera. Vai para lá e para cá com o celular na mão. Liga para Deus e o mundo. Nem sempre a internet ajuda e as falas cortadas aumentam a tensão. “Eita, internet miserável!”, se queixa. Daqui, do meu canto, escrevo e reflito. Por trás

das vidas diariamente salvas há uma rede de agentes, profissionais de saúde empenhados para que isso aconteça. A Covid-19 é o elemento novo desafiando uma saúde pública deficitária e realidades locais historicamente arraigadas.

A essa altura o número de casos e óbitos inflam no Maranhão. “Ultrapassamos a marca dos 1.000 casos confirmados de Coronavírus. Agora são 1.040. Com 44 óbitos. Irei editar novas medidas. Mas elas só serão adequadamente cumpridas e produzirão efeitos se houver compreensão de todos. Conto com vocês”, informa o governador do estado, Flávio Dino, via Twitter.

“Ainda nesse telefone?”, indaga meu pai, Lourisvaldo, que vive o oposto. Cansou-se da calmaria. Quer ganhar o mundo atravessando o país rumo a Santa Catarina. Com o risco da pandemia no sul foi mandado para casa, até segunda ordem, pela empresa para a qual presta serviço.

Imersa em inquietude, minha mãe faz ecoar pela casa azulada um sinal de alívio, sorri em diálogo com o médico plantonista. Os sintomas do paciente em questão são incompatíveis com os da Covid-19, não havendo necessidade da solicitação de teste. Passará a noite no hospital e será liberado na manhã de seguinte.

O Coronavírus é um daqueles marcos amargos na história humana. Assunto entre novos e velhos, incluindo a vizinha que vem comprar o didinho que minha mãe faz quando chega do trabalho. Minha velha (expressão de família) continua ali, abrindo a boca de sono, no mesmo lugar, desde as 18h. Já são 21h14.Por sorte encontrará água na torneira para lavar o jaleco e o corpo fatigado pela soma dos dias. Nunca janta antes das 22h30. Na manhã seguinte me diz que a noite foi longa e que praticamente não dormiu.

Quantas enfermeiras, médicos e demais profissionais que fazem parte da engrenagem Sistema Único de Saúde (SUS) não dormem bem já há alguns dias? Minha mãe representa tanta gente nesse momento. Mulheres e homens em risco, nos grandes centros de saúde e hospitais de baixa e média complexidade espalhados pelos rincões do Brasil. Vai parecer clichê, mas a máxima é coerente: por trás das vidas preservadas existem inúmeras noites perdidas.

Joaquim Cantanhêde, jornalista, documentarista, vive em Pedreiras (MA), terra de João do Vale. Consciente que é somente cisco do tempo. @joaquimcantanhede

A cada terça e sexta um novo texto nessa nova seção. Acompanhe.

💰 Continuamos com nossa campanha no Catarse.
Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente: catarse.me/apoierevestres

E para ler Revestrés#45 INTEIRAMENTE LIVRE CLIQUE AQUI PARA VISUALIZAR A EDIÇÃO ONLINE.