Há três vias principais de analisar a relação entre a educação e o projeto de retrocesso político e social que chegou ao poder no Brasil com o golpe de 2016. Cada uma delas apresenta elementos que justificam a compreensão desta relação como fundamental na conjuntura atual. 

A primeira via é a construção de um discurso que vê a educação como subversão de valores. O efeito líquido da escola, do jardim de infância ao ensino superior, é a destruição do código de valores inculcado nas crianças pela família. Por isso, as propostas de cerceamento da liberdade de ensinar e aprender andam juntas com a valorização da entidade familiar como autoridade última sobre os mais novos. Os filhos são projetos dos pais e, justamente por isso, não são vistos como sujeitos de direitos. O slogan “Meu filho, minhas regras”, adotado pelos ideólogos da “Escola Sem Partido” (sic), a oposição dos parlamentares conservadores à Lei Menino Bernardo, que impede castigos físicos contra crianças, e a ideia de que os pais podem vetar conteúdos didáticos bebem todos desta mesma fonte. 

O que é necessário, para combater esta ofensiva conservadora, é exatamente apontar que o limite da autoridade familiar está no fato de que os filhos são indivíduos com seus próprios direitos. Com o direito à integridade física, que impede o castigo corporal. E com o direito a ganhar acesso às ferramentas que permitam ampliar sua capacidade de ação autônoma no mundo. Por isso, cabe sim à educação não destruir, mas questionar os códigos de valores herdados das famílias, colocando os estudantes em contato com visões de mundo diferentes. Isso reforça a tolerância à diferença e a aceitação da pluralidade própria do mundo contemporâneo, que são absolutamente cruciais para a construção de uma sociedade mais democrática e menos violenta. E permite que os jovens encontrem seu próprio caminho – mesmo que eventualmente seja para abraçar a cosmovisão de seus pais, mas agora de maneira mais esclarecida e autônoma. 

A educação é questionadora por natureza. O conhecimento científico do mundo se produz com a insatisfação com o discurso corrente, com a busca de novas e melhores respostas, com a recusa a aceitar as aparências sem indagar o que está por trás delas.

A educação é questionadora por natureza. O conhecimento científico do mundo se produz com a insatisfação com o discurso corrente, com a busca de novas e melhores respostas, com a recusa a aceitar as aparências sem indagar o que está por trás delas. É assim com o mundo natural – ou estaríamos todos aceitando que o sol gira em torno da terra – e também com o mundo social. O veto ao questionamento dos padrões de autoridade, dos fluxos estabelecidos de distribuição de vantagens e desvantagens na sociedade ou aos papéis sociais estereotipados (como os de gênero) é a verdadeira doutrinação, que nos leva a negar nossa possibilidade de sermos agentes no mundo. 

Como consequência desta primeira dimensão, surge a intimidação de educadores e estudantes. No Congresso Nacional e em assembleias legislativas e câmaras de vereadores de todo o Brasil tramitam projetos que criminalizam a docência, instituem hotlines para que estudantes denunciem professores, punem com demissão aqueles que ousarem discutir assuntos “proibidos” em sala de aula. Mais do que – no momento – a esperança de estabelecer uma legislação tão autoritária, tais projetos visam manter docentes e discentes na defensiva. Há uma campanha para que sejam produzidas ações contra professores, que, embora não tenham fundamento jurídico, obrigam profissionais já muito assoberbados de trabalho a gastarem dinheiro, tempo e energia com sua defesa. Diretores de escolas públicas e privadas sofrem pressões, de mercado ou políticas, conforme o caso, e são estimulados a silenciar os professores para evitar maiores dores de cabeça. 

Mesmo as universidades, cuja autonomia é claramente protegida pelo artigo 207 da Constituição Federal, não estão ao abrigo de ameaças. No Brasil pós-golpe, em que as garantias se tornam cada vez mais incertas, é possível que um juiz proíba o funcionamento de um grupo de pesquisa por não gostar de sua temática marxista, que outro juiz suste a concessão de um título de doutor honoris causa por antipatizar com o homenageado, que o ocupante do Ministério da Educação tente censurar disciplinas que utilizam palavras constantes do seu índex de termos proibidos. De cima a baixo, o pensamento crítico e o debate estão acuados. 

O terceiro eixo, enfim, é o desmonte da educação, seja com o desinvestimento, seja com a desorganização de matrizes curriculares consolidadas ao longo de décadas, por imposição unilateral e sem qualquer debate com a sociedade. A PEC dos gastos públicos e a MP do ensino médio são os emblemas deste projeto. 

Felizmente, há resistência, de estudantes e professores dos vários níveis de ensino. O que está em jogo é a possibilidade de pensarmos coletivamente em como construir um país diferente. A educação que nos fornece instrumentos para ler criticamente o mundo, como queria Paulo Freire, continua desafiando os donos do poder e teima em resistir.  

Luis Felipe Miguel é Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor de Ciência Política na UnB. Autor de vários livros, é o criador do curso “O golpe de 2016”, que inspirou outros com o mesmo tema em diversas universidades brasileiras.

(Publicado na Revestrés#35 – março-abril de 2018)