Na Avenida São João aguardando um Uber, uma mulher ao meu lado aguardava o seu. Nessa altura, eu era voluntária no Instituto de Reintegração do Refugiado, onde dava aulas de português. Tento iniciar uma conversa elogiando o fato de filhos de refugiados terem conquistado o direito à creche. A notícia me deixara muito feliz. A mulher em questão pensava diferente: “as crianças refugiadas vão tirar o lugar de crianças brasileiras”.

Saindo de um espetáculo, recentemente, encontro uma artista, criadora excepcional, inconformada com a falta de oportunidades para seus projetos. “Agora os editais só contemplam negros, indígenas, periféricos e pessoas trans…”.

A reação imediata é pavloviana: o outro é aquele que vem para tomar o “meu” lugar.

Ponto para os donos da coisa toda, porque é a lógica deles que prevalece nessa situação: dividir e continuar dando pouco. Por que não rompemos com essa lógica e passamos a exigir que haja creches para todas as crianças? Por que não exigimos mais verba para os editais em vez de brigar pelas parcas verbas destinadas à arte e à cultura?

Com muito atraso, editais públicos e privados, festivais, centros e instituições culturais, abriram espaço para as produções de artistas invisibilizados sem, para tanto, aumentar os recursos financeiros investidos. As instituições se satisfazem com suas políticas afirmativas mesmo que para isso cometam exclusões que, aliás, se julgam justificadas.

Evidentemente as injustiças históricas têm urgência, têm muita urgência. Estamos devendo muitíssimo a todos que foram e são alijados da vida institucional do país.

Como responder a essas urgências sem reiterar a fragmentação e o conflito entre nós? Como não recair no que fez tudo chegar onde chegamos? Nosso desafio não é pequeno!

Uma das estratégias mais comuns dos colonizadores e imperialistas, como se sabe, é justamente colocar grupos ou nações umas contra as outras, enfraquecendo ambos os lados para, por fim, sujeitá-los a aceitar o preço baixo da necessidade. Vivenciamos isso sem nos darmos conta de que estamos fazendo o jogo dos opressores e vemos, então, homossexuais femininas contra homossexuais masculinos, brancos contra negros, ribeirinhos sem terras contra indígenas sem reservas, nativos contra refugiados, pessoas cis contra não-binárias e vice-versa e etcetera. Dividir para dominar.

Organizações, Institutos e Secretarias de Cultura dão com uma mão o que tiram com a outra. Trabalhar com a diversidade como um valor cultural, educacional e artístico requer recursos materiais e humanos. As instituições deveriam, em primeiro lugar, sair do dualismo e buscar mais verbas ou serem mais inventivas com as verbas que têm. Do contrário, o custo das inclusões recai sobre os próprios artistas que veem seus mercado de trabalho e a sua arte sucateados. A cultura, a educação, a saúde, a economia inclusivas precisam de mais verbas ou apenas trocarão os papéis, por um tempo, entre os que serão os incluídos e os que serão os excluídos. Dicotomia da alternância que só inverte a ordem de valores.

Não é segmentando que se inclui. Há diferenças. Elas são importantes e constitutivas dos grupos sociais. Naturalmente, a responsabilidade não é somente das instituições. Precisamos nos perguntar o que esse tempo político pede de nós.

Se não são todos os privilegiados que concordam com a política de destruição e supressão de infinitas vidas humanas e não humanas; se não são todos que compactuam com as políticas colonizadoras e com as forças de coerção e cooptação do poder, nós que nos sentimos co-responsáveis porque vivemos com privilégios devemos usar as armas facultadas por esses privilégios a favor das causas que nos sensibilizam e nos movem. E não é só pelo outro, é por nós, é pela vida.

Um dos maiores saltos da nossa história recente acontece com a entrada dos movimentos sociais, culturais, étnicos e de gênero no campo do direito democrático. Indígenas, negras, negros e mais mulheres ocupam cargos estratégicos no governo federal.

Sabemos, contudo, que as conquistas não são perenes. E uma maneira de lutar por sua permanência é exigir creches, escolas, fomentos culturais, bolsas de estudo para todos ou não haverá democracia.

Se tudo isso necessita financiamento, necessita ainda mais de novas ativações e novas composições políticas, coletivas e artísticas.

Os caminhos que havemos de criar e construir coletivamente estão no plural e estão no futuro.

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Sonia Sobral é curadora de dança. Foi gestora de Artes Cênicas do Itaú Cultural por 17 anos e curadora de dança do Centro Cultural São Paulo, em 2019 e 2020. Criou a performance Involuntários da Pátria, em 2016, com a atriz piauiense Fernanda Silva, numa residência do CAMPO Arte Contemporânea. Como interlocutora, acompanha criadores em residências artísticas.