“Venha preparado ou não venha”. Esta frase serviu de inspiração para Toni Morrison escrever a obra Paraíso, de 1998. Em uma entrevista, a autora contou que o aviso constava em um cartaz dirigido a pessoas negras que pretendiam se estabelecer em uma cidade norte-americana, para onde só deveriam migrar se tivessem recursos financeiros. A crueldade do racismo e as diferentes formas de lutar pelos direitos civis para os negros dos anos de 1960 foram retratadas por Morrison em seus livros, também inspirada pelas falas de líderes como Malcolm X e Marthin Luther King.

“Venha preparado ou não venha”. A frase martelava em minha mente. Era fevereiro de 2017 quando cheguei à Comarca de Oeiras para assumir a 2ª Defensoria Pública, com o dever de promover os direitos civis das pessoas e dos grupos vulnerabilizados da região. Oeiras é terra de Esperança Garcia, e possui 12 comunidades quilombolas no seu entorno. Era perceptível um constrangimento no olhar de quem não estava preparada para a grandeza do contexto histórico da primeira capital do Piauí. Como parte que somos de um país que se fundou em uma estrutura racista, inevitavelmente estamos inseridos no contexto que exclui, e replicamos em nossas condutas diárias atos que precisam ser de uma vez por todas enfrentados e expurgados. 

 

Era quase um sonho ser parte de uma instituição que tem por missão ser um instrumento do regime democrático. Era doloroso perceber que a relação dialógica, contudo, recorrentemente, não passava de um olhar simpático, mas pouco efetivo. Longe de ser uma faculdade do membro da instituição, os defensores e defensoras públicas devem ser parte no enfrentamento aos preconceitos e aos reflexos do racismo estrutural. 

Mas este olhar crítico para si e para os lados é difícil e requer disposição para marretar. Há um negacionismo que emudece as falas daqueles que não se percebem como uma peça na engrenagem racista. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, em abril de 2021, revelou que 84% das pessoas entrevistadas reconhecem o racismo no Brasil, mas apenas 4% admitiram ser preconceituosos em relação a pessoas negras. Esta miopia leva pessoas e instituições, públicas e privadas, a um discurso de neutralidade que afeta e exclui as minorias étnicas. O professor Silvio Almeida ensina que o racismo não se resume a comportamentos individuais. Numa sociedade racializada, como a nossa, as injustiças sociais também são parte das instituições, que acabam por conferir vantagens e privilégios a uma classe dominante, que é branca. 

 

Sendo parte de uma instituição com atribuições tão notáveis, não saber por onde começar ou como fazer não poderia ser apenas um motivo de vergonha, mas um chamamento à autorresponsabilidade institucional. Visitas aos quilombos e o estabelecimento de canais de atendimento rápido passaram a ser rotina neste exercício de romper barreiras. O pronto atendimento e a troca de mensagens a qualquer hora do dia acontecia tão somente com os quilombolas e com os parceiros da luta por justiça social, além, claro, de outros casos previstos em normas como prioridades. Demais demandas eram tratadas dentro da logística de agendamento, sem mais privilégios.  

 Em 2019, o Projeto Vozes dos Quilombos ganhou este nome e atribuição para atendimento de demandas quilombolas de todo o estado, tendo sido fomentado desde então pela gestão atual da Defensoria Pública do Piauí. Outra ação de transformação institucional importante foi a proposta, também levada pelo Vozes dos Quilombos, para a previsão de cotas raciais, tanto para os concursos de ingresso nos cargos de carreira, como nos testes seletivos de estagiários, e ainda para que se observe, sempre que possível, a equidade racial nos eventos promovidos pela instituição. Aprovada por unanimidade pelo Conselho Superior da Defensoria, e consubstanciada na Resolução CSDPEPI nº 139/2020, a medida foi adotada a partir da compreensão acerca da necessidade de termos mais pessoas negras, indígenas e quilombolas nos espaços de poder.  

No âmbito nacional, as Defensorias de todo o Brasil vem estimulando este movimento antirracista. Destaca-se neste processo a campanha nacional de 2021 da ANADEP (Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos) que, mediante o trabalho comprometido de sua Comissão de Igualdade Étnico-Racial, lançou o tema “Racismo se combate em todo lugar: Defensoras e Defensores Públicos pela equidade racial”.  

O sonho de Defensoria plural e diversa, inclusive nas funções de gerência institucional, é de muitas mentes inquietas. Mas o racismo está sempre se reinventando, e o pensamento colonial nos atravessando. Por isso este exercício de responsabilidade deve ser diário. Grada Kilomba e sua obra inspiradora e poética ensina que o racismo é um problema do branco de hoje, que, embora não sendo o responsável pela escravidão, tem a responsabilidade de equilibrar a sociedade em que vive. A visibilidade das comunidades quilombolas é, em última análise, uma oportunidade de aprendizado, um modelo de vida sustentável que pode nos salvar do caos social e ambiental, e da covardia de permanecermos inertes. 

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Karla Andrade é Defensora Pública do Piauí. Idealizadora e Coordenadora do Projeto Vozes dos Quilombos da DPE Piauí. Pós-graduada em Direitos Humanos e Democracia pela FAR. Graduada em Direito pela UFPI.

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Publicado em Revestrés#50. 

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