De que são feitos os álbuns de família? De momentos felizes, claro. Não queremos guardar as dores, as ausências, as brigas. A fotografia de família pertence a um universo singular, pois está menos preocupada, em geral, com questões ligadas às evoluções da linguagem fotográfica do que com o registro de acontecimentos importantes para a vida familiar. O que aconteceu pode estar ali, registrado. Quando se organizam fotografias em um álbum, o objetivo é conservar algo caro àquele grupo, o que foi vivido e o que já foi visto. No entanto, cada vez que um álbum é aberto, exposto e discutido, os aniversários, os jantares de Natal, as viagens, os batizados, os almoços de domingo acontecem de novo e, a partir das nossas experiências, as memórias são atualizadas e nossas lembranças podem surgir. 

Fotograma do filme “Ejercícios de memoria” (2016), de Paz Encina.

Como nos diz o filósofo francês Georges Didi-Huberman, se há desejo, há memória. Manusear ou tornar público um álbum de fotos familiares é a materialização de um desejo, de ver, por exemplo, que nossos mortos estão vivos novamente, encarando a câmera e o fotógrafo. Para Anne-Marie Garat, autora do livro Photos de familles: Un roman de l’album (1994), a fotografia, não apenas a de família, é muito mais que um trampolim para a imaginação. É o arranjo dos vários elementos da imagem – sombra e luz, desfoque, nitidez, profundidade de campo, perspectiva, ponto de vista – que desperta a memória sensorial. As pessoas das fotos se tornam personagens de uma narrativa que também é oral e polifônica, pois há vários narradores: cada um conta, comenta e interpreta as imagens a seu modo. Os álbuns de família são, então, esse conjunto de fotografias que contam uma história, mas ocultam outras. 

Os álbuns de família são esse conjunto de fotografias que contam uma história, mas ocultam outras. 

E o que acontece quando as fotografias de família e seus silêncios são tiradas do âmbito privado para serem confrontadas com a memória social em documentários sobre períodos históricos que ainda nos doem, como as ditaduras civis-militares na América Latina? A cineasta paraguaia Paz Encina, em seu segundo longa, “Ejercícios de memoria” (2016), recorre, entre outros elementos narrativos, aos álbuns de família para contar a história de Agustín Goiburú (1930-1977), um médico opositor da ditadura de Alfredo Stroessner, sequestrado quando estava exilado no interior da Argentina, durante a Operação Condor, cujo corpo nunca apareceu. 

No início do filme, a câmera, em primeira pessoa, nos leva do quintal para dentro da casa, onde a mesa de café da manhã ainda está posta. A luz suave da manhã banha a mesa e a sala, trazendo uma sensação de aconchego, embora não haja pessoas em cena. O som é familiar para quem tem relação com o campo: mosquitos, animais “de roça”, cachorros latindo. A voz em off de uma mulher chama por alguém (som típico da mãe que “grita” os filhos que estão brincando fora de casa). Ainda no tempo de existir, pontuado pelos sons de um relógio e da vida que pulsa – o quintal, a mãe, o vento, os animais –, caminhamos pela casa, examinando seus detalhes e sua intimidade. 

Fotograma do filme “Ejercícios de memoria” (2016), de Paz Encina.

Paz Encina conduz a filmagem como se estivesse “tateando” o ambiente em busca de lembranças, resgatando o passado para o tempo presente, com um olhar curioso. A casa está vazia, mas a vida está presente nos detalhes da mesa posta, nos sons do quintal. No entanto, não sabemos se se trata também de fantasmas do passado e nada é feito para tirar o espectador da incerteza dessa percepção. Acordamos do “sonho”, ainda à mesa e ainda ouvindo o som do tempo, com a narração em off de uma mulher: “Uma mulher no trem, fugindo com crianças. Uma ditadura, 35 anos. O controle e o exílio. Estas foram as primeiras imagens que me entregaram”. 

Saímos da mesa de café da manhã e aparecem as primeiras fotografias de família, presas no espelho que reflete a máquina de costura. A câmera mostra a capa de um álbum, com algumas fotos em preto e branco aparecendo, mas sem que possamos distinguir o que está nas imagens, com a narração em off: “Me falaram das risadas, dos abraços, da família”. Justamente o que esperamos que um álbum de fotografias de família guarde, os bons momentos; assim como também é o lugar seguro em que a identidade do grupo familiar está protegida. As fotografias de família cumprem aqui, com a casa, o papel de guardião do que é sólido, do que resiste, quando fugir faz parte da rotina. Agora, não é mais a voz em off que narra o que ouviu/recebeu da família Goiburú, mas, sim, a reprodução de um discurso possivelmente veiculado em uma rádio. Enquanto vemos a foto na parede de uma mulher com uma criança, a voz que vem do aparelho diz: “Aqui se perdeu até mesmo o direito de respirar”. 

Ao trazer elementos subjetivos para a história, atualizando as memórias individuais, na medida em que o passado passa a ser não apenas lembrado, mas analisado a partir da memória coletiva, e dando nome, rosto, dor, medo, angústia, afeto aos fatos históricos, o filme se converte em lugar de memória histórica e também em documento. Com as fotografias de família, o passado tangencia o presente continuamente. Acredito que, ao mergulhar em uma foto do passado, estamos suspensos em vários tempos: no “aconteceu”, no “poderia ter acontecido”, no “vai acontecer”. Esse cristal do tempo cria um fluxo entre as memórias individuais e coletivas em que uma compõe a outra, emprestando elementos para que as lembranças pessoais sejam atualizadas e compreendidas, e para que a história seja revisada do ponto de vista de quem reivindica o direito à memória, à verdade e à justiça. 

Patrícia Cunegundes Guimarães é Doutoranda em Comunicação na PUC-Rio, onde pesquisa o exílio no cinema documental chileno. Durante o mestrado, na Universidade de Brasília (UnB), pesquisou álbuns de fotografia e cinema documental latino-americano como lugares de memória das ditaduras civis-militares.

 

Publicado na Revestrés#47. 

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