Tempos turvos. O convite da Revestrés para escrever sobre democracia me chega como um dedo na ferida infectada. Falar de democracia quando esta se encontra ameaçada, suspensa, banalizada e descaradamente ridicularizada no Brasil, seria falar de ausência e ilusão, ou daquilo que não existe, portanto algo do qual não se pode falar.
A filósofa belga Chantal Mouffe propõe democracia como dissenso, – ao contrario de consenso – como antagonismo e conflito entre diferenças, numa multiplicidade pensada como uma “revolução democrática”, onde “um novo tipo de instituição do social é originada, e a fronteira politica entre amigo e inimigo venha a se redesenhar”.
Para Mouffe, a “sociedade já não pode ser definida como uma substância que tem uma identidade orgânica” e ela sugere que “a fim de prosseguir e aprofundar este aspecto da revolução democrática, temos de assegurar que o projeto democrático leve em conta a amplitude e especificidade das lutas democráticas em nosso tempo”. (Chantal Mouffe, The return of the political, tradução minha).
Das muitas lutas democráticas que se travam no mundo de hoje, a que mais me interessa é a que prescinde de conceitos, de classificações partidárias e hierarquias legitimadas: a guerrilha do corpo.
Pensar democracia com e a partir do corpo me parece uma tarefa quase incoerente quando se trata de organizar algum sentido, porque o corpo não apenas reconfigura esses sentidos continuamente, mas faz gerar outros a cada afetação, a cada estímulo, a cada desvio da percepção monitorada que tenta determinar hegemonicamente a nossa existência. O que quero dizer é que essas guerrilhas do corpo estão se dando numa fricção, num embate ou numa comoção coletiva, que é a própria manifestação de uma ausência de comum, e que surge em forma de descrença e desesperança do que seja democracia em nossas vidas de cidadãos.
Então prefiro chamar de demoniocracia essa falta, e o desconhecimento e a intolerância na maneira em que vemos ser tratada essa ideia de comum, a partir dos movimentos fascistas e autoritários que rebentam nos corpos, numa fricção resistente e desbaratada do indivíduo com a sociedade e o mundo.
Essa guerrilha do corpo é a guerrilha dos índios que foram transformados em pobres e são tratados como lixo humano em sua própria terra, em um processo de des-subjetivação aniquiladora. A guerrilha dos negros que são mortos em intervalos de menos de 1 hora no Brasil e que vivem em uma sociedade que os classifica como inferiores e controla e manipula sua posição social. A guerrilha das mulheres, dos gays, lésbicas e transexuais, constantemente ameaçados e violentados pelas hegemonias e normatividades. E a guerrilha de milhões de outros que são gente como a gente, mas vivem sob um regime de discriminação e intolerância, numa condição explicitamente desigual.
Existir como diferença e como afetação, não pensar democracia mas ser e permanecer constantemente democrata no embate com o outro, no se dissolver e virar outro, no corpo que revira a vida a cada ato, a cada fôlego. O corpo feito território plural de uma utopia revoltada, tumultuada, e absolutamente democrática em sua instabilidade e impermanência. E antes que seja tarde demais: FORA TEMER!
*Marcelo Evelin é bailarino e coreógrafo.
(Publicado na edição#26, agosto/setembro de 2016)