Vivemos em pleno desenrolar do golpe midiático, judiciário e parlamentar que, em 2016, feriu de morte a frágil democracia brasileira, já sem muitos avanços para além do plano meramente formal. Que o digam as periferias. Tempos oportunos para refletirmos sobre o papel da mídia nos destinos de nosso povo. Proponho então o enfrentamento de um mito de consequências graves: o da liberdade de imprensa no Brasil.
O que entre nós costuma ser batizado com o nome palatável e politicamente correto de “liberdade de imprensa” tenta esconder, na verdade, um cenário de oligopólio midiático que impossibilita quase completamente o contato da grande massa da população com a pluralidade de opiniões e de narrativas. Literalmente, meia dúzia de famílias controla praticamente a totalidade da informação circulante, constituindo-se em grupos empresariais poderosíssimos, a exemplo das quatro TVs abertas que hipnotizam diariamente a imensa maioria da população, com uma programação idiotizante e baseada num pensamento uniforme e conservador, a exemplo das Organizações Globo, umas principais articuladoras do golpe de 2016.
Nesse contexto, qualquer ideia de regulação da mídia – que nada tem a ver com controle de conteúdo ou censura –, de modo a combater a concentração dos meios nas mãos de poucos, no sentido de efetivamente democratizá-la, como impõe o art. 220, § 5º, da Constituição Federal, é recebida pela grande imprensa com ataques arquitetados a partir de discursos pomposos, mas completamente esvaziados de sentido. O poder econômico, que afinal mantém sob controle os meios de comunicação de massa, tem o mais absoluto pavor do que seria uma imprensa verdadeiramente livre, o que necessariamente implicaria na multiplicidade de opiniões e perspectivas. O que defendem é a liberdade deles mesmos de continuarem a praticar um jornalismo-negócio, venal, absurdamente promíscuo e comprometido com a lógica do mercado e da preservação do establishment. Não é à toa que uma das primeiras medidas de Michel Temer foi demitir o diretor presidente da Empresa Brasil de Comunicação – EBC, Ricardo Melo, que tinha mandato outorgado por lei, além de dissolver, via Medida Provisória escandalosamente inconstitucional (MP n° 744/2016), o conselho curador da estatal de comunicação. O órgão era o coração do sentido democrático da empresa criada em 2008, cuja programação de rádio e TV representou um esforço conciliatório de democratização da informação e estava anos-luz à frente do material de baixíssima qualidade exibido pelas emissoras privadas. Como convém a um vocacionado para o golpismo, o ilegítimo quer transformar uma empresa concebida para a comunicação pública em órgão chapa branca de propaganda oficial de seu governo catastrófico.
Portanto, ao atacarem com mentiras aqueles que defendem a urgente regulação da mídia, os barões da comunicação pretendem, com interesses maquiados, porque inconfessáveis, convencer a todos de que a grande imprensa trabalha com um produto como outro qualquer, não havendo problema algum em submetê-lo aos dogmas da livre concorrência. Pura Canalhice. Os meios de comunicação jamais poderiam ser concebidos como simples mercadores de um produto qualquer, exposto à venda na farra capitalista. É que eles não operam, absolutamente, com um produto, mas com a informação de um povo, que é um direito fundamental de natureza indiscutivelmente estratégica para a formação e consolidação da consciência democrática de uma nação. É exatamente em razão disso que a Constituição Federal de 1988, depois de elevar a informação, a comunicação e a expressão livres à categoria de direitos fundamentais (art. 5º, IX e XIV), atribuiu à União a prerrogativa de explorar, diretamente ou mediante regime de autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens (art. 21, XII, alínea a) e obrigou o poder público a criação de mecanismos que impeçam o estabelecimento de monopólios e oligopólios no setor (art. 220, § 5º), exigindo ainda o respeito a um conjunto de valores caros à democracia (art. 221). O interesse – mais do que isso, a obrigação – do Estado Brasileiro de exercer a fiscalização quanto ao cumprimento das referidas normas constitucionais é fundamental para a construção de um País onde o povo não seja cotidianamente submetido à exploração extrema e ao escárnio do poder econômico.
E avançamos muito pouco, para não dizer quase nada. O resultado dessa omissão estatal é a concentração absurda da informação nas mãos de poucos, com rebaixamento do nível da capacidade crítica do povo e, consequentemente, a criação de um contingente gigantesco de pessoas que são facilmente manipuladas ao sabor dos interesses do capital. Segue assim o ciclo pavoroso que volta e meia nos bate à porta, vestido de truculência, para aplicar um enorme carimbo de censura que traz à mão a uma senhora muito cara à evolução civilizatória: a democracia.
*Dárcio Rufino de Holanda é Defensor Público do Estado do Piauí
(Artigo publicado na Revestrés#31 – Junho/Julho 2017)