Hoje eu descobri que cachorros conhecem as pessoas há 14 mil anos. Sabem muito mais da gente do que a gente deles. Sabem o que vamos dizer antes mesmo de sair qualquer palavra da nossa boca, são capazes de sentir um terremoto com a ponta do rabo.

 

Estou confinado com um cachorro, o Lobinho, e um amigo, a Gui. Conhecemos o Lobinho na quarentena. Nos primeiros dias eu andava muito irritado e me sentindo arrogante e macho e dizendo um não atrás do outro pra qualquer movimento que o Lobinho fizesse.

Pensei nos lobos antes dele e me lembrei das fogueiras de quando inventamos a maldade no Campo, quando deixamos nossos joelhos frouxos para ficar na altura dos cães, tentando aprender a ser menor.

Ontem fiquei de quatro por muitas horas, ele parou de me morder, engatinhamos por aí mijando nas plantas, nos lambemos e latimos muito quando percebemos que o chão está mais frio que o costume e mais grosso também.

O caminho pro centro da Terra está ficando cada vez mais denso. São mais de 14 mil novos mortos enterrados só no Brasil. Tem uma multidão se formando embaixo da terra com milhares de braços e pernas e olhos e cabelos que cobrem uma área do tamanho de uma floresta.

Lendo outro dia A Vida das Plantas, descobri que há raízes de mais de 400 metros quadrados de uma planta da qual só vemos seus caules e folhas. Ela não tem flor. Ao mesmo tempo em que ela cresce em direção ao centro da terra, acena pros planetas, se alimentando do sol. Ela não precisa da gravidade como nós para existir, e é essa força que me faz ceder por não conseguir me sustentar mais de quatro. Assim me deito, e Lobinho, agora, está gigante, fungando na minha orelha, lambendo minhas feridas, cheirando meu cu.

Ouvi há pouco tempo que a revolução do Haiti foi feita em escuta dos Voduns, entidades espirituais que ditaram muitas das ações a serem tomadas. As cabeças dos brancos colonizadores foram decepadas, uma nova língua foi criada e o ser humano foi reinventado através de uma tomada de poder sem concessões.

Imagino o sono de uma pessoa revolucionária haitiana antes de se levantar e partir para uma batalha. Imagino os sonhos que teve, como deve ter acordado suada por todas as visitas que recebeu durante a noite, a chuva que caiu sem que ela ouvisse, o cansaço, o vento que trazia uma mensagem de quem a ama e não sabe quando vai encontrar novamente.

Escrevo esse texto ainda no chão, deitado com os cães, as fogueiras, as raízes, o sol, os haitianos, para que possam nos visitar e dançar no nosso corpo.

Bruno Moreno é performer, criador e artista residente no CAMPO arte contemporânea. @bruno___moreno

A cada terça e sexta um novo texto nessa nova seção. Acompanhe.

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