cenário de ameaças cibernéticas é tenebroso porque os cibercriminosos atuam em todas as frentes – desde a subtração de valores das contas bancárias à disseminação de boatos que podem mudar o resultado de uma eleição. Especialistas preveem que a ação dos cibercriminosos com uso de Inteligência Artificial sofistica-se em velocidade exponenciamente superior ao desenvolvimento de filtros e antivírus. Sem falar na multiplicação contínua de aplicativos falsos que, ativados por botnets (os populares robôs), atacam usuários com propagandas ou tentações à curiosidade, como os apelos ao erotismo e à bisbilhotice à vida íntima de celebridades, tudo com o objetivo de acessar senhas e desviar depósitos com uso de dispositivos móveis e fixos. 

Não existem plataformas seguras. Como afirma André Munhoz, Country Manager da Avast para o Brasil, “quanto mais a tecnologia evoluir, quanto mais dispositivos adicionarmos às nossas redes – sejam PCs, dispositivos móveis ou dispositivos de Internet das Coisas (IoT) -, mais sofisticado e global se tornará o cenário de ameaças. Os cibercriminosos vão continuar usando ameaças conhecidas e emergentes em todas as plataformas e dispositivos, para atacar pessoas, empresas e governos com sucesso. O cibercrime global tornou-se tão lucrativo, que é quase impensável assumir que esta questão irá melhorar”. 

As pragas são muito antigas. As mentiras, também 

A humanidade já enfrentou pragas terríveis ao longo de sua história. No século 20 a varíola matou 500 milhões de pessoas (a epidemia começou em 430 A.C., quando ainda não havia registro estatístico, e só foi considerada erradicada em 1979). A Peste Bubônica matou mais de 300 milhões de europeus entre os séculos 14 e 18. A Gripe Espanhola devastou a Europa, espalhou-se pela América e chegou até o Brasil, onde matou 300 mil pessoas, entre elas o presidente Rodrigues Alves, em 1919. E olha que nem mencionamos a Malária, a AIDS, a Cólera, o Tifo… 

As informações falsas ou inverídicas, principalmente as que se destinam a favorecer uma causa ou uma pessoa, são muito antigas. Tiradentes mesmo disseminou em locais propensos à propagação de boatos a falsa informação de que o motim contra ao corte de Lisboa era iminente. Mais recentemente, uma fake política, o Plano Cohen (documento que revelava a existência de uma conspiração comunista que nunca existiu) justificou a implantação do Estado Novo de Vargas. A diferença entre as fakes d’antanho e as de hoje é exclusivamente a lentidão dos burros que difundiam as notícias no passado em relação à velocidade estonteante dos bites turbinados da internet de hoje. 

Pragas matam gente. Fakes matam a Verdade 

As fake news são bem mais difíceis de enfrentar do que as doenças virais do passado. Para as notícias falsas não existem antivírus (como os que protegem os computadores), nem vacinas (como as que protegem os seres humanos e os animais), nem tratamentos (que curam os doentes). Depois de inoculadas, as fake news danificam irremediavelmente o sustentáculo da própria civilização humana – a Verdade, fiadora universal das relações de confiança e respeito na vida em sociedade. Se fossem de um único tipo, teriam alguma chance de ser combatidas, mas, à semelhança dos “vírus”, as fake news se sofisticam e passam por mutações, tornam-se mais dissimuladas e resistentes, o que praticamente inviabiliza os esforços para sua neutralização. 

As fakes de natureza política têm sido as mais observadas e analisadas ultimamente, porque têm influência direta no futuro de países e de democracias.

Existem fakes de vários tipos. Algumas, até ingênuas, essas produzidas por mitômanos cuja finalidade é garantir ao autor um sentimento de prazer sádico pelo pânico dos destinatários. São, por exemplo, os informes sobre cometas que estão a caminho da Terra e irão destruí-la, ou sobre doenças que vão dizimar o gênero humano. Uma derivação delas, mais perigosa, é a fake com promessa de cura de doenças por meio de soluções fáceis. A fake sobre a baba do quiabo como substituta dos remédios para o diabetes já mutilou muita gente. E as que sugerem a substituição dos tratamentos convencionais por beberagens ou simpatias prometendo a cura do câncer já levaram centenas de crédulos aos cemitérios. As de natureza econômica reduzem a pó patrimônios consideráveis cada vez que ocorre um ataque de informações falsas sobre megafusões de empresas, elevação ou queda do dólar, previsão falsa de alta de ações e de movimentação anormal nas bolsas. As fakes de natureza política têm sido as mais observadas e analisadas ultimamente, porque têm influência direta no futuro de países e de democracias. A interferência digital russa na última eleição americana e a ação de influenciadores maliciosos internos na eleição mexicana são exemplos recentes, assim como a difusão de boatos alarmistas no Brexit, que retirou o Reino Unido da União Europeia. O Brasil já é considerado um dos alvos mais importantes para as “fábricas” de fake news. Por isso, a ação dos cibercriminosos e sua influência no Brasil tendem a aumentar. 

 

Procura-se uma receita. Mas não há receita 

Quatro fatores tornam as fake news uma ameaça cada vez mais perigosa, insidiosa e, por vezes, letal. A primeira é a velocidade com que as informações falsas se propagam na web, em relação às verdadeiras. Pesquisas do MIT, de Massachusetts, indicam que uma informação falsa tem 70% maior chance de ser retransmitida, contra 30% de uma informação verdadeira. O pior é que a retransmissão normalmente é feita de boa-fé, descontando, é claro, a que é redistribuída pelos bots, os robôs maldosamente programados com essa finalidade. Ou as que são repassadas mesmo que o autor saiba que contêm informações falsas mas, se forem a favor da causa ou do candidato que ele defende, são passadas à frente. O segundo fator, ligado ao primeiro, é que as fake news se disseminam num ambiente virtual de abrangência planetária, portanto, de difícil identificação de origem. E, mesmo quando se consegue descobrir de onde uma fake partiu, demora uma eternidade. Ou o autor jamais será descoberto nem punido. A ausência de territorialidade da rede planetária chamada internet permite que uma publicação falsa disparada a partir de um perfil hospedado num país europeu contendo uma calúnia contra um brasileiro dificilmente seja retirada em prazo razoável de uma plataforma como o Facebook, por exemplo. Tal providência depende de acordos bilaterais, já que as legislações sobre internet são diferentes em cada país. A sofisticação das informações falsas chega ao ponto de fake news trazerem links – falsos! – por meio dos quais é possível “verificar a autenticidade” de seu conteúdo… falso! Em quarto lugar, produção e disseminação de informação falsa é uma atividade altamente lucrativa, por isso as quadrilhas de cibercriminosos se multiplicam em todo o planeta, e estão literalmente em toda parte. Um desses bandidos, diante de um tablet ou de uma tela de celular pode estar neste momento aí ao seu lado, sem que você se dê conta. 

Uma informação falsa tem 70% maior chance de ser retransmitida, contra 30% de uma informação verdadeira.

Até aqui não há receita de alguma providência que, sozinha, seja capaz de conter, frear, impedir ou pelo menos amenizar o impacto das fake news. Elas só podem ser combatidas por uma ampla combinação de fatores. O primeiro deles é o próprio avanço tecnológico, com adesão das plataformas, como recentemente fez o WhatsApp, marcando as mensagens repassadas para permitir seu rastreamento, e o Facebook, bloqueando perfis falsos e postagens ofensivas. Tudo isso precisa vir acompanhado da modernização do aparelho judiciário, pela adoção de ritos sumários de investigação e punição. Qualquer juiz sabe que justiça que demora é injustiça. Outro fator é a educação midiática, que deveria se tornar conteúdo obrigatório a partir do ensino básico, já que atualmente qualquer criança possui e usa computadores e celulares através dos quais compartilha informações. E passa pela conscientização geral da população, tarefa tão difícil quanto o combate ao mosquito aedes aegypti. A tarefa de enfrentar as duas pragas – dengue e notícia falsa – passa pela ação responsável de cada cidadão. São conhecidas as dificuldades de mobilização da população para um esforço deste tipo.
 

Quanto mais jornalismo de qualidade, menos fakes 

Além disso, há uma atividade – o jornalismo –, que tem papel fundamental no combate à ciberpraga das notícias falsas. Quando as redes sociais começaram a se popularizar, há cerca de uma década, o jornalismo foi demonizado como espaço contaminado pela opinião e pelo facciosismo. A informação produzida e distribuída diretamente pelos cidadãos iria substituir os media. Ninguém precisaria mais de jornais, rádios, emissoras de tv. As redes sociais resolveriam tudo. Mas a explosão das fake news veio provar a importância e a necessidade do jornalismo livre e democrático. Feito por pessoas, com suas virtudes e defeitos, e mesmo com eventuais falhas de apuração e equilíbrio, mesmo com eventuais distorções provocadas por ideologias ou influências do mercado, e apesar das eventuais falhas de caráter de alguns profissionais da imprensa, não há melhor forma de se produzir informação confiável e próxima da verdade. O velho e essencial trabalho dos jornalistas vem se revelando, a cada dia, mais insubstituível, ao contrário do que se imaginava. Pois só a informação confiável, resultante de checagens e rechecagens, com a confrontação de pontos de vistas de todos os lados envolvidos, tem poder para combater eficazmente a falsa notícia. 

O resto é fake news 

Paulo José Cunha é Jornalista da TV Câmara, professor de Jornalismo da UnB e escritor.

(Publicado na Revestrés#37- agosto-setembro de 2018)