Linguagem, lutar com o indizível. Para dizer o quê? O que quero, direto, para me alçar a ti, a ti leitor!, longe das verdades prontas, que nos leve ao humano, ao em carne viva? Falemos lá do fundo! Acho que estamos cansados. O dinheiro não cumpre com suas promessas de satisfação, e nos tira descaradamente tempo de vida; as relações virtuais ocupam o lugar das relações sociais; consumimos para pertencer, e estamos isolados, sem rede, sem segurança; e o tempo corre no trânsito parado e o Natal está bem aí de novo. A dose de cafeína cai e bradamos contra a corrupção, o nazifascismo, a política! Aqui, caro leitor, nesse ponto mesmo, vamos querer água viva (e deixar doer). Crime-corrupção-depressão-matanças – é grandiosa obra nossa!
A Santa Inquisição, em combate à corrupção, ardeu mulheres nas fogueiras, aplacando o ódio dos miseráveis. Enquanto queimava carne de gente, o povo ouvia as confissões, os juízes faziam prova de suas verdades. Bruxas: mulheres, sem família, habitantes das florestas, sem um qualquer a reclamar-lhes a vida – exato por isso, as escolhidas. (quem arde nas fogueiras, hoje, sob nossos olhares?) No Rio de Janeiro, 80% dos assassinados nas intervenções policiais é o público preferencial: negro, pobre e jovem. A investigação ocorre em apenas 8% desses casos, em quase nenhum, a condenação. Os dados são da ONU. E o ódio que justifica esse genocídio, vem de onde? De nós, de nossa ignorância em relação ao outro.
O ódio vem também do medo. Quando pedimos mais cadeia para o motorista bêbado homicida, estamos com medo que nossas pessoas amadas sejam mortas no trânsito. Mas, talvez, estejamos pedindo a coisa errada. A fala mais punição está automatizada pelo discurso imposto, alienante por obra da mídia e sacralizado por obra jurídica. Para que nossa pessoa amada não morra no trânsito é preciso: mais consciência, transporte público de qualidade, diminuição do número de carros, acostamentos, fiscalização, ciclovias, multas mais altas, automóveis expropriados para as reformas. Jamais houve pesquisa que provasse a relação entre recrudescimento da punição e prevenção do crime. Ao revés: mais punição, mais violência, de todos os lados. Que apodreça na cadeia serve à vingança daqueles que perderam uma pessoa querida; é seu grito de dor. Nós, quando sentimos essas tragédias pelas redes sociais, pela televisão, pedimos um lugar melhor para viver. Queremos então mais ônibus, menos carro. (queremos?) Ou queremos apenas criminalizar?
O Estado Penal (ex-Democrático) está em alta no Sistema de Justiça brasileiro. Furto e sonegação: ambos são crimes praticados contra o patrimônio, sem violência ou ameaça a qualquer pessoa. Mas têm suas diferenças: um objeto furtado raramente chega a mil reais, sonegação muitas vezes é de milhões; vítima do furto é o proprietário, vítima da sonegação somos todos nós. (qual o mais grave na tua opinião?) O autor-sonegador, no último momento do processo (vários anos se passaram), pode se arrepender daquele vultoso furto contra o povo brasileiro, pagar o que deve, e terá extinta a sua punibilidade, terá seu perdão! Em relação ao sujeito que furtou o som de cem reais e quer restituir o valor do som e do vidro quebrado do carro, não tem perdão – para este, não há esquecimento. Isso é justiça e legalidade no entendimento predominante do Superior Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público. Dedo em riste, mas só na cara de uns (pobre sonega tributo?).
Criminalizando, fingimos que estamos mais seguros e justos. Afobados, o desabafo irresponsável, o problema é que o criminoso fica solto! O Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo! e o único destes que aumentou em 33% nos últimos anos sua população carcerária; os outros três a decrescem (dados do Conselho Nacional de Justiça). Nossos presos aprendem uma só coisa: o incremento do crime. No lema-lenga mais punição estamos mais inseguros, mais injustos, mais cínicos. Que apodreça na prisão o viciado em crack, traficante, perigoso. Amigo, parente, pessoa do meu meio, usuário de cocaína, avião, quero que se cure, que retome sua vida. Aquele, o do lado de lá, não tem vida mesmo a retomar. É a criminalização. Mas não de todos. É a criminalização seletiva. É o que deixamos o STF fazer, justamente porque também a fazemos.
E não há engano: a seleção é intencional e tem suas funções. O descaso ou a operacionalização da prisão (ou da morte) do pobre é coisa própria do sistema financeiro de acumulação, que o tem como sobra da roda do capitalismo. A seletividade da criminalização segue seu curso: políticos presos por corrupção do PT em relação a outros políticos investigados do PMDB ou do PSDB é número que não fecha para qualquer pessoa de boa-fé. A intenção? Talvez, criminalizando partidos um pouco mais sensíveis à sina do oprimido (o PT foi só o primeiro), tem-se instrumento decisivo para o descarte do resto humano que criamos.
Enquanto nosso dedo segue em riste contra a corrupção ou o Estado de Exceção, trocamos favores políticos, votamos em amigos e parentes, pedimos de cara mansa tais votos, à espera do privilégio próximo, do emprego, dos contratos, do cargo – a isso não chamamos de crime eleitoral nem de corrupção. Dedo em riste, acusamos os políticos todos, ladrões! Sem descanso, acusamos o pobre (vendeu seu voto por cinquenta reais) de criminoso, de ignorante.
Muito acusamos – muito criminalizamos – muito nos irresponsabilizamos. Apontamos ao nariz chato, assim, assim, com medo de que um dedo, desavisado, entorte – e aponte para nós mesmos! Feios-pequenos-frágeis, sem “likes”, estamos em crise, todos dedos-duros. (crise!) Mas não é justo nas crises que o posto é rompido e o novo mostra a cara?
Surge no aqui-agora a potência, possibilidade de reinvenção, de mim, de ti, do humano, da política. Acusando demais corremos o risco de nos ausentar, de não experienciar. E queremos, todos nós, pertencer à vida – dizem que há dez mil modos de fazê-lo. Quê? Achas que é utopia? Ora, utopiar-se é ato de resistência.
Torquato Neto, Nise da Silveira, Márcia Tiburi, Krishnamurti, Eduardo Galeano, Gilberto Gil, Graciliano Ramos, Zygmunt Bauman, Clarice Lispector, Millôr Fernandes, João Ricardo, Ney Matogrosso e outros mais de perto: esse diálogo foi com eles, me guiando e provocando. Agora é teu.
* Janaína Fortes Ferreira é Mestra em Direito Constitucional
(Publicado na edição#27, outubro/novembro de 2016)