Cem anos após a Semana de Arte de 1922, que defendeu um nacionalismo antropofágico, ao deglutir elementos estrangeiros e promover uma renovação estética na arte brasileira, Anitta cria um novo nacionalismo com a estética e som da favela. A apresentação da cantora no Coachella, o maior festival de música pop dos Estados Unidos, em abril (2022), levou ao palco mais do que rebolado. O figurino, as músicas e o cenário expostos no palco vomitaram para o mundo a essência da arte expressa nos corpos e casas das periferias brasileiras.

Imagem: Divulgação/ Coachella

Ao longo da formação da identidade nacional, muitos intelectuais se debruçaram para tentar explicar a cultura do Brasil e as questões relacionadas a mistura de raças e as influências estrangeiras. Vale lembrar que essa identidade não é fixa, ela se altera com o passar do tempo, influenciada, principalmente pelas manifestações artísticas e suas linguagens.

Se Gilberto Freyre, com o movimento Regionalista, os romancistas de 30, com os retirantes, e Luiz Gonzaga, com o baião, colocaram o Nordeste no centro da estética artística nacional, Anitta usa, inteligentemente, o Rio de Janeiro como o centro da cultura nacional a ser exportada para o mundo. Mas diferentemente dos sambistas ou de Carmen Miranda, Anitta sobrepõe o funk ao samba e este é o grande mérito em novidade de sua atuação.

Nas performances de Anitta, o seu próprio corpo é o elemento principal de linguagem. Ela se reproduz numa menina típica das favelas cariocas ou de muitas outras periferias pelo Brasil afora, que usa shortinho curto e cropped. Uma postura comercial muito inteligente, tal qual fez Luiz Gonzaga com o chapéu e gibão de vaqueiro ou Carmen Miranda com bananas e abacaxis na cabeça.

Anitta está comercialmente voltada para os gringos, mas carrega os brasileiros consigo, pois o nacionalismo apresentado por ela ressignifica o verde e amarelo que haviam se tornado elementos do conservadorismo e de uma política eleitoreira bancada com os cofres públicos.

Ao invés de renegar as suas origens, Anitta usou a postura da mulher da periferia brasileira para vender sua música e ganhou pela originalidade e ousadia. Apesar das plásticas que adequaram seu rosto a certos padrões, a artista mantém no seu corpo, principalmente, através do seu figurino e coreografias, o espírito malandra da carioca de favela.

A mistura de elementos nacionais com estrangeiros não é novidade. Na década de 1920, os modernistas, inspirados em vanguardas europeias, fizeram uma renovação das artes, colocando o verde e o amarelo em destaque. Quase 50 anos depois, o movimento influenciou os tropicalistas, que no final da década de 1960, anunciando a manhã tropical, revolucionaram as artes reunindo elementos do folclore nacional com ritmos estrangeiros.

Anitta, mesmo mantendo o funk em evidência, faz uso do reggaeton e do rock, elabora cross-branding com artistas latinos e norte-americanos, com intuito de se tornar popular nesses mercados. A menina da favela, ou a garota do Rio, vez ou outra usa elementos do samba e até da bossa nova, numa mistura ousada de reinventar o Brasil para os gringos. No palco, ela canta em três idiomas, entra de moto, como os típicos passeios de moto-taxi entre as casas das favelas cariocas, mas também dos bairros populares de todas as grandes cidades brasileiras.

Reinventar a música brasileira não é uma empreitada solitária de Anitta. Outras artistas, como Pablo Vittar, que regravou ritmos de forró eletrônico e arrocha, ou Joelma e Gaby Amarantos, que cantam ritmos do Norte do Brasil, são manifestações importantes da cultura nacional que usam elementos rítmicos das periferias do país, sons populares, e reinventam o ser da identidade nacional.

Alguns podem dizer que não há inteligência nas letras das canções gravadas por essas artistas e estes podem até ter razão. Não há comparação com a riqueza linguística do samba ou da tropicália, mas há, sim, equidade de valor dos ritmos, na beleza dos movimentos, na expressão corporal e, principalmente, em dar vida ao Brasil aqui dentro e lá fora.

É verdade também que não há crítica social nas performances de Anitta, embora haja crítica política. A miséria não é exposta, como fez o Cinema Novo, mas a estética da miséria brasileira é ultrajada na alegria e na festa, porque assim pede o mercado da música de redes sociais e festivais. Anitta está comercialmente voltada para os gringos, mas carrega os brasileiros consigo, pois o nacionalismo apresentado por ela ressignifica o verde e amarelo que haviam se tornado elementos do conservadorismo e de uma política eleitoreira bancada com os cofres públicos. Aí está o maior valor do que Anitta fez no Coachella, a melhor resposta que ela poderia dar a um governo que vive continuamente de campanha eleitoral, ela mesmo sendo um dos alvos principais da milícia digital do bolsonarismo.

A apresentação de Anitta no festival é um alerta, uma forma de expressar possibilidades do que a arte ainda pode fazer pelo Brasil.

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Daiane Rufino é professora do Curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Piauí – Uespi. É doutoranda em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí – Ufpi.

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Texto publicado na Revestrés#51. Nas bancas ou compre pelo site:

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