Em 22 de maio de 2018, faleceu, aos 86 anos, Alberto Dines, jornalista, escritor e fundador do Observatório da Imprensa, um dos mais importantes projetos de crítica da mídia no Brasil. Dines foi também um dos últimos jornalistas-intelectuais brasileiros. Ao longo de sua trajetória, conseguiu conciliar reportagem, literatura, militância política (no sentido mais amplo do termo) e engajamento intelectual. Entrevistei-o duas vezes para minha tese de doutorado, que acabou virando o livro Jornalistas-intelectuais no Brasil, publicado em 2011 pela Summus Editorial.
Conheci Dines pessoalmente na manhã de uma quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007. Fizemos a entrevista em seu escritório, uma casa na Vila Madalena, São Paulo. Na época, lembro-me de ter ficado impressionado com a quantidade de livros que ocupavam as estantes. Quando comentei, Dines riu e apontou para o quintal: “Está vendo aquele container lá fora? São meus livros que chegaram do Rio de Janeiro, me mudei há pouco e ainda não tive tempo de desempacotar”.
Aprendi a admirar a erudição de Dines. Durante nossas conversas, discutimos não só jornalismo, mas falamos muito sobre literatura, cinema, história, sociologia. Na época eu estava na casa dos 20 anos, conhecia pouco o mundo e acreditava presunçosamente que a universidade era o espaço por excelência de discussão intelectual.
Na época eu estava na casa dos 20 anos, conhecia pouco o mundo e acreditava presunçosamente que a universidade era o espaço por excelência de discussão intelectual.
Dines me apresentou o ambiente cultural do Rio de Janeiro dos anos 30-40 onde forjou sua identidade intelectual. “O Rio de Janeiro era isso, era a capital, estavam ali o nascente cinema brasileiro, o pessoal de teatro. Todo dia eu via o Villa-Lobos, jogando sinuca. Sou muito fruto desse ambiente cultural e consegui me encaixar. Esses ambientes vão te conduzindo porque as cidades, naquela época, permitiam essa concentração de intelectuais”.
Conheci um Alberto Dines diferente da imagem de jornalista e de crítico da mídia – suas faces mais conhecidas pelo público. Após a primeira entrevista, continuamos uma correspondência esporádica, que terminou pouco depois da defesa do doutorado, em agosto de 2008. Em uma dessas trocas, ele chegou a me enviar pelo correio algumas reportagens publicadas pelo jornalista e escritor norte-americano Philip Roth – que, aliás, faleceu um dia após a morte de Dines. Junto com os textos fotocopiados, veio uma pequena mensagem, desejando que os relatos de Roth me ajudassem a reencontrar a “beletrística do jornalismo”.
Um jornalismo beletrista
“Hoje é uma palavra quase desconhecida e até desprezada – e naquela época talvez até mais. Eram os anos 50 das grandes revoluções modernistas da literatura, belas letras era uma coisa a ser ignorada”, explicou Dines, ao comentar a primeira parte de sua carreira, ainda na revista Manchete. Mais tarde, tornou-se diretor de redação do Jornal do Brasil, na sequência da reforma de 1956, que havia dado início à modernização do jornalismo brasileiro. “Tudo o que eu podia botar de beletrística, eu botei lá. Um jornal denso, um jornal bem escrito, um jornal com remissões históricas”.
Dines acreditava que a mídia tinha mais a oferecer do que simplesmente difundir uma informação de forma eficaz. “Se a imprensa é mal escrita, a literatura também é
Defender a beletrística pode parecer contraditório para alguém que ficou conhecido justamente pelas transformações promovidas no JB, pela organização dos fluxos editoriais, pela reestruturação da redação, pela profissionalização dos repórteres. Na entrevista, Dines reconheceu essas contribuições, mas deixou transparecer certa nostalgia de um jornalismo mais intelectual. “Essa modernização da técnica jornalística talvez até tenha contribuído para afastar o jornalismo da beletrística. É um paradoxo porque o lead, organizado cientificamente, é anti-literário”.
Não que fosse um defensor do jornalismo opinativo, partisan, do início do século passado. Dines acreditava que a mídia tinha mais a oferecer do que simplesmente difundir uma informação de forma eficaz. “Se a imprensa é mal escrita, a literatura também é. Então eu acho que, se você estabelece um padrão literário, um padrão mais exigente de escrita, a sociedade toda sai beneficiada”.
No JB, passava os dias escutando os intelectuais que redigiam o editorial do jornal. E passaram pelo corpo de editorialistas grandes figuras, como o poeta Mário Faustino e os escritores Antônio Callado, Otto Lara Resende e Luiz Alberto Bahia. “Eu realmente queria escrever com sonoridades mais literárias.”
Por isso, ao sair do JB, em 1973, Dines pode realizar o seu sonho de fazer um jornalismo beletrista, em seus livros – escreveu vários, incluindo a bela biografia Morte no paraíso, a tragédia de Stefan Zweig –, mas também como editor do Observatório da Imprensa. Para ele, tudo isso era jornalismo. “O problema não é só saber escrever, é ter uma atitude de intelectual perante a vida, de se sentir: ‘Eu sou um agente cultural’”.
Transformações do jornalismo
Dines era remanescente de uma geração que acreditava que o jornalismo era uma atividade de intelectuais. A modernização dos jornais e a introdução do jornalismo de mercado nos anos 1980, de certa forma, restringiu a esfera de atuação desses jornalistas-intelectuais. “Antigamente, as redações eram centros de fagulhas, estavam ali fagulhando, um talento batendo no outro. Hoje as redações não existem. A redação deixou de ser uma usina de centelhas”.
Com o tempo, os jornalistas-intelectuais foram sendo substituídos por profissionais já adaptados à lógica do mercado. “Poucos jornalistas, hoje, elaboram os seus textos. É um embrulha e manda”. Isso explica a saída de Dines da imprensa mainstream. Como outros intelectuais, ele foi obrigado a criar novos espaços que lhe permitissem continuar militando por um jornalismo capaz de contribuir com a sociedade.
Minha decisão de entrevistar jornalistas-intelectuais foi, antes de tudo, um projeto pessoal: reencontrar figuras que haviam ajudado a construir uma imagem mítica da profissão. Esse era o jornalismo que eu gostaria de ter conhecido e praticado se tivesse trabalhado em uma redação. Por isso, escrever sobre essas pessoas foi uma forma de deixar registrada essa herança intelectual do jornalismo.
Hoje, tenho uma ideia mais clara da importância desse trabalho de resgate. Além de Dines, dois jornalistas entrevistados para a tese já faleceram: Carlos Chagas e Carlos Heitor Cony. Nas aulas, percebo que a maioria dos meus estudantes da Universidade de Brasília não conhecem Alberto Dines. O problema é que, no momento atual, em que vivemos novamente um “tempo negro e temperatura sufocante”, com o país “sendo varrido por fortes ventos…” precisamos mais do que nunca de redações-fagulha e de jornalistas-intelectuais.
Fábio Henrique Pereira é professor de Jornalismo da UnB e editor executivo da Brazilian Journalism Research.
Artigo publicado na Revestrés#37 – agosto-setembro de 2018.