O Brasil desenhado na Constituição Federal é um Estado democrático de direito. Pelo menos era até 17 de abril último. Esse princípio fundamental da nossa organização e convivência sócio-política, conquistado pelos movimentos sociais do campo e da cidade, foi rompido ao conduzirem ao poder um governo ilegítimo, a partir de estratagemas nada republicanos.

O fato aludido trouxe mais uma vez a discussão sobre a democracia brasileira para o centro da cena política no país e revelou que sequer aquele mínimo da democracia representativa está consolidado entre nós. O cenário fica mais estarrecedor quando passamos a olhar a democracia para além da sua mera dimensão eleitoral-representativa; quando buscamos compreendê-la a partir das medidas tomadas pelo governo e das consequências sociais concretas que estão sendo geradas para a população. Quer dizer, fazermos eleições e respeitarmos seu resultado é só o ponto de partida; um meio que encontramos para viabilizar uma democracia que se concretize na vida das pessoas pelo acesso pleno aos bens e recursos socialmente construídos. Desses, um dos mais relevantes é o acesso à terra e às condições para nela se viver e trabalhar; outro é o direito que temos de nos alimentar e de consumir alimentos seguros. É do que nos interessa tratar aqui.

O Presidente Interino Michel Temer revelou-se articulador e beneficiário direto de um arco de alianças que destituiu o governo legitimamente eleito de Dilma Roussef, quebrando a institucionalidade brasileira. Dentre outros, recebeu o apoio irrestrito da bancada ruralista.  Não é de se estranhar, portanto, que a mesma tenha sido agraciada com o Ministério da Agricultura; além do endosso à Lei nº 13.301/2016, que aprovou a pulverização aérea de veneno nas cidades; do apoio ao PL 3.200, que modifica – para pior – a normatização do uso de venenos no país; do esvaziamento do INCRA e da extinção do MDA, instituições responsáveis pelas medidas de apoio à pequena agricultura. Essa postura do governo interino, portanto, reafirma a sua clara opção pelo agronegócio, agravando a situação dos povos rurais. Mas de que modo o agronegócio afeta a democracia?

A vida política do país e o atual ataque à nossa democracia estão imbricados ao agronegócio em face da monocultura subsistir financiada, em grande parte, pelas políticas estatais. Essa sistemática de produção surge e se consolida associada a um modelo de desenvolvimento que aposta no mercado global em detrimento do local, no mercado de commodities como recurso de gerenciamento das contas públicas. Estando sua produção como ativos em bolsas de valores, segue obediente aos humores do mercado de capitais, fugindo do destino prioritário que um alimento deve ter que é de consumar o direito das pessoas à alimentação. Desse modo, o agronegócio surge no cenário global cumprindo o papel que a poderosa geopolítica dos grandes estabelece para cada país do mundo. E embora o setor apareça como sustentáculo da economia nacional, na verdade, o nosso papel – de fornecedores de produtos primários e commodities – enfraquece a posição do Brasil em relação às nações industrializadas e lhe retira da urgente tarefa de produzir para o mercado interno, garantindo o direito ao alimento, no campo e na cidade. A monocultura também implica na perda do direito ao trabalho, seja pela expropriação dos pequenos proprietários, seja pela baixa geração de postos de trabalho. A promessa do emprego farto vem sendo desmascarada por pesquisadores Brasil afora2

Por outro lado, impondo a monocultura, a mercantilização e os processos de transgenia o agronegócio novamente ameaça a segurança alimentar. Não apenas porque impor espécies únicas de cultivares é expô-las ao alto risco de extinção, mas também porque agricultore/as tradicionais presos ao mercado de sementes e diversos insumos perdem a autonomia do seu trabalho e tornam-se reféns de uma política de preços e de royalties que não conseguirão administrar nos marcos da pequena produção. Também sua saúde estará exposta a riscos em função do uso de herbicidas e pesticidas, responsáveis por vários danos sanitários, já documentados por pesquisadores3. Por fim, a monocultura em escala, assentada em matriz químico-mecânica, é apontada como co-implicada na crise ambiental que enfrentamos. O agronegócio vem sendo acusado de provocar o desmatamento, de desencadear a mudança no ciclo das chuvas, a escassez de água potável, o envenenamento de fontes de água e dos alimentos produzidos, perdas irreparáveis na fauna e na flora4, cerceando os direitos difusos das populações.

Reconhecendo a gravidade da adoção desse modelo como a saída rumo ao desenvolvimento, agricultore/as, estudioso/as, movimentos sociais e até países têm reagido ao que propõe o agronegócio, seja quanto à posição política assumida, ao modo que interpreta o uso da técnica na agricultura, seja pela maneira que se relaciona com a natureza e os seres humanos. Assim o fazem por ter seus direitos tolhidos. Direitos do presente e do futuro; locais e globais; no campo e na cidade. Como alternativa, vêm construindo outro paradigma já bastante conhecido, que é Agroecologia5.

A Agroecologia deve ser compreendida como um modo de nos entender como seres humanos em relação conosco mesmos e com a natureza, intentando produzir um alimento e não como uma mera sistemática de produção agrícola. Dessa perspectiva, orienta-se pela democracia, a sustentabilidade e a soberania. Do ponto de vista da democracia, a Agroecologia pratica a participação popular empoderadora nos processos que envolvem os/as trabalhadore/as rurais. Assim, adota o princípio do respeito ao outro e às suas especificidades, do respeito à diversidade humana. Horizontaliza a convivência e toma os saberes, as relações, as tecnologias, a cultura e a história locais – patrimônio que marca a trajetória de uma população ou de um povo – como válidas e potentes enquanto estratégias de vida ante uma realidade. Nessas circunstâncias, a troca entre os sujeitos é tomada como única escolha capaz de potencializar o crescimento mútuo e emancipador e seu produto, como algo inexoravelmente CONSTRUÍDO COM os principais interessados.

Quando trata da sustentabilidade a Agroecologia elege a preservação, a recuperação e a conservação dos recursos naturais como prioridades. Orienta-se pela utilização máxima dos recursos já disponíveis, declinando da exploração predatória e comprovadamente insustentável. Assim, vê a terra e seus recursos como aliados; entendendo as dinâmicas do ambiente como coprodutoras do que se deseja cultivar. Insetos, animais, plantas, clima, solo, fontes de água etc. são partes ativas do processo e assim, o esforço das pessoas se soma ao trabalho da natureza. No modelo agroecológico a produção, a soberania dos povos, a segurança alimentar, a democracia e a sustentabilidade se imbricam e se retroalimentam numa relação onde alimento, subjetividades, natureza, política e vida fazem parte igualmente do todo resultante.

Quanto à viabilidade econômica da Agroecologia, muito poderia ser dito, mas basta citar que hoje o mercado desses produtos cresce em todo o mundo, no Brasil, e aqui no Nordeste, como fartamente noticiado. Também cresce numa margem de 30% ao ano, o mercado de produtos orgânicos. No Piauí encontramos experiências exitosas em São Raimundo Nonato, Parnaíba, Pedro II, Oeiras além de outras iniciativas. Em Teresina, dez localidades rurais se preparam para fazer a conversão de produção convencional para a orgânica, de base agroecológica, muito em breve. Várias comunidades já cultivam sem nenhum veneno ou adubo químico. A Feira da Agricultura Familiar que atualmente ocorre na Praça Rio Branco tem sido a comprovação de que a Agroecologia é possível, viável e desejável. Pela sustentabilidade dos povos de hoje e pelas gerações vindouras; pelo planeta. E é contra esse cenário que as ações do governo interino se voltam. Atacar o INCRA, o MDA e suprimir direitos dos agricultore/as familiares é parte fundamental do seu projeto político de inviabilizar a Agroecologia e a democracia no campo.

* Valéria Silva é doutora em Sociologia Política

(Publicado na edição#26, agosto/setembro de 2016)

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2) Pesquisa de campo que  realizei no sudoeste do Piauí mostrou que uma fazenda de soja que explorava 22.800 ha empregava apenas 123 pessoas, no período da safra. Ver SILVA, Valéria. Agronegócio e desenvolvimento em Sebastião Leal-PI: atores, processos e impactos sócio-culturais-ambientais. Anais do XXIX Congreso Latinoamericano de Sociología-ALAS. Santiago-Chile: setembro/outubro/2103.  Disponível em: < http://actacientifica.servicioit.cl/biblioteca/gt/GT5/GT5_SilvaV.pdf

3) Ver CARNEIRO, Fernando et. al. (Orgs). Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. FIOCRUZ/ABRASCO. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015. 624 p.

4) Ver SILVA, Valéria Op. Cit.

5) Ver ALTIERI, M. Agroecología : principios y estrategias para la agricultura sostenible en América Latina del Siglo XXI. In. MOURA, E.G. e AGUIAR, A. C. F. (Orgs). O desenvolvimento rural como forma de aplicação dos direitos no campo: princípios e tecnologias. São Luís, UEMA, 2006. p. 83 – 99.