Sentir o corpo pesar o cansaço do dia era o sinal de que eu precisava ir deitar. Escovei os dentes, bebi um copo d’água revisando o que havia para desligar, apaguei a luz do quarto e sentei na rede. Tirei os chinelos e olhei para a brecha de luz que caminhava da sala até a porta à minha esquerda. Ele já estava lá quando o vi. A sua presença no sofá, entretanto, não me assustava. Incomodava-me, de fato. Mas considerei a hipótese de que ele não sentia o mesmo peso que eu sobre os ombros, ou não estaria inventando uma visita, seja lá que horas fossem.

Não ia me deixar dormir, então fiquei de pé. Dobrei para a cozinha e decidi requentar um café que já estava na garrafa. Não sei por que, achei que quando o encontrasse, seria barulhento. Bem, as expectativas eram, pelo menos, maiores do que ficar ouvindo a família de grilos que resolveu morar embaixo de um dos móveis. Servi o café para mim e não o ofereci.

Encarávamo-nos. Era como se o visse pela primeira vez. Não era estranho, nem lindo. Tampouco parecia o filho de alguém. O seu rosto lembrava o de uma pessoa que amo, misturado com o de uma cuja existência desprezo, com traços de algo que nunca vi na vida. Surpreendi-me com a saúde que o seu corpo exibia.

Desviei o olhar, mas queria continuar a encará-lo: eu tinha tantas perguntas! Dúvidas minhas e de muito mais gente. Eu havia lido na internet. Não lembro se ontem, ou na semana passada – vai ver no mesmo dia que ontem, só que na semana passada. Tenho lido bastante coisa. E mesmo quando não é sobre ele, encontro um jeito de lembrar que ele tem a ver, afinal, ele sempre tem a ver com tudo.

Parecia saber, inclusive, que eu estava evitando encontrá-lo.

Aproveitamos o clima da quarentena e passamos a madrugada inteira juntos. Eu sentia o cansaço de um calendário e chequei a hora algumas vezes no relógio do computador. Isso não o incomodava. Ao contrário, percebi que ele estava tranquilo em ter uma companhia que não lhe cobrava produtividade alguma.

Lembrei, mais uma vez, do que havia lido na internet (no ontem da semana passada). A maioria das pessoas que conheço está em casa e o virtual tem se mostrado refúgio para muitos. Por ora, não me agrada receber tanto conteúdo produzido, e de supetão. Correndo de hashtag tebetês, distraio-me com vídeos sobre política e sobre como lavar e conservar adequadamente os legumes na geladeira. Estes estão em alta. Evitamos o desperdício para não ter que sair de casa. Ponto pro planeta.

Eis que caio numa dessas páginas que divulgam ideias de como passar a quarentena. Nos memes, pessoas demonstram relações problemáticas com o Tempo. Como aproveitá-lo da melhor forma, o que será de nós se não o fizermos, a contagem dos dias da semana como a invenção mais inútil do mundo… Alguém falou que todos os dias têm sido domingo. Percebo o quão subjetiva é a maneira como enxergamos a passagem do Tempo: para mim, domingos são oportunidades incríveis de estar com quem amo, de pedalar para algum lugar, de procurar um bar que esteja aberto.

A julgar pelo pagode anos 90 do vizinho que entra pela janela da sala logo cedo, eu até poderia cogitar. Mas o domingo aqui na Vila também tem cheiro de churrasco e não estou vendo ninguém dar uma festa. Devo confessar que alguns dias são difíceis de gravar, como a quinta-feira, que eu só sei que chegou porque é noite de karaokê no bar da esquina. Aí, já entendo que não preciso do despertador no dia seguinte, porque as sextas-feiras são de ficar o dia todo em casa. Que ironia andarem dizendo por aí agora que elas foram extintas…

A inconveniente visita. Tenho costurado a quarentena sozinha, mantendo contato com as pessoas que mais amo da forma que mais odeio – respondi num e-mail que aguardava-me há dois anos: “não existe uma forma inventada por gente de comunicar que substitua o tête-à-tête, pois nenhuma delas suporta o abraço”. Algo no qual eu já acreditava antes de qualquer isolamento social, de repente, fez com que assistisse-me cair em contradição ao, arrogante, supor que alguém já sentiu-se abraçado por algo que escrevi.

Desde que tranquei-me aqui, tenho obedecido as recomendações sobre visitas de maneira tão incisiva, que nem as dele serviam-me. Mas a verdade é que ele estava nas fotos do feed, nos memes sobre qualquer assunto e até nas explicações que a moça do Masterchef deu em sua live, enquanto manuseava vegetais. Fui assistir algo na Netflix para esquecer o assunto e também o vi por lá. Concluí que bastava qualquer referência a confinamento e a “uma vida lá fora”.

O ponto alto do encontro madrugada adentro, talvez, tenha sido quando ele me ajudou a reconhecê-lo, fazendo uma contagem nos dedos das mãos. Vinte dias era o Tempo. De repente, toda a experiência que adquiri ao ignorar suas visitas, tornou-se um número que não me dizia absolutamente nada, somado ao que parecia representar um conjunto de horas. Conseguia ser intrigante e desinteressante numa coisa só. Vinte dias. E o Tempo de estar confinada era o mesmo de plantar e colher um pé de cebolinha. Era o Tempo que levava para alguma coisa chegar pelo correio, para durar uma greve ou para que eu precisasse ir de novo ao cabeleireiro.

Eu recomeçaria o processo todo, quando ele fosse embora. Tinha tudo arquitetado nos instantes de silêncio que dividimos no sofá. Poderia fingir que nada tinha acontecido e, com algum esforço, até esqueceria que já entramos em abril. Mas, olhando-o diante de mim, entendi que não era ele o vilão. Que ele não está mais confuso, mais lento, mais rápido, mais escroto do que antes.

Um compositor cantou: “Tempo passando ensina de graça tempo e contratempo”. Sorri ao imaginar que Jards Macalé também já tenha recebido a sua visita de forma inusitada. Sigo despistando. Se ele voltar, bem. Sento, assimilo e aprendo. Afinal, o Tempo tem sido o único sujeito capaz de correr livremente nas ruas e permanecer imune.

Amina estuda Letras, gosta de mudar o cabelo, pedalar e não come animais.
A cada terça e sexta um novo texto nessa nova seção. Acompanhe.