Em 2015, Guilherme Figueira publicou Tantos anônimos e um ou outro com certidão [ed. Oito e meio]. Pequenas narrativas de enfrentamento ao nem sim nem não dos jogos do amor: imagem dialética, aventura desconhecida. O livro anda por aí, devagar. Mais perto, pode ler-se ali uma disputa interessante quando descobre-se que o narrador/autor [esta linha difusa] tem origem numa permanente transparência de um torcedor de futebol partido ao meio, feito o visconde de Ítalo Calvino, porém numa tabela simples e ordinal, e com força: Botafogo, depois Bahia. A literatura, assim como o futebol, é apenas uma tentativa de tocar algum real, este plano do impossível, e projetar existências. A partir dessa relação expandida, pode-se entender que, de algum modo, torcer para um só time de futebol e quase matar e matar-se por ele é, também, sobremaneira e inconscientemente, a manutenção do grande nervo capitalista: a propriedade privada, o direito de posse, a individualização progressiva de controle e poder. O que gera, numa multidão descontrolada, em defesa da fronteira e da nação, cores e bandeira, o mesmo descompasso histórico opressor: primeiro, conflito; depois, a guerra cretina. Basta voltar um pouco: Freud, 1921, A análise do eu e a psicologia das massas 

O futebol, assim como a literatura, tem a ver com operações de desejo e paixão. Grosso modo, quando se diz futebol se diz mesmo é filosofia.

Mas isso também aponta a um lance infinito: o de que o futebol, assim como a literatura, tem a ver com operações de desejo e paixão, principalmente se a bola aparece como artifício da imaginação [ela pode não estar ali, pode apresentar-se como um objeto ausente] e do pensamento, e move uma inserção de temporalidade que está diretamente vinculada ao corpo. Grosso modo, quando se diz futebol se diz mesmo é filosofia. Vale o mesmo para a literatura. Nelson Rodrigues, por exemplo, atribuiu ao futebol um saque metafísico de método constitutivo entre a fúria moderna e o gesto clássico, porque talvez vislumbrasse que há nele uma dança que despreza o cálculo individual mais arguto e tende à opção por um desenho coletivo alucinado entre o tempo e o espaço, entre movimento constante e invenção. E se individual, algo próximo das jogadas e provocações de Almir Pernambuquinho, o furioso e à margem, que jogou no Vasco da Gama, no Flamengo e no Boca Juniors; foi assassinado por um grupo de portugueses num bar no Rio de Janeiro, motivo: tentava defender alguns travestis. Com menos violência, mas não sem fúria, Romário [o último torto, bem antes do senado], aparentemente sempre entediado, despertava de uma vez e rompia o espaço num zás com o peito apontado para frente e um desprezo atávico com o mundo ao redor. O gesto era todo em direção ao gol: a bola levemente empurrada e colada à ponta da chuteira para sempre ou num quadrado mínimo e impossível, sobre-humano, e quando a descolava da chuteira fazia-a seguir a linha oscilante do pensamento: a de uma dança esgotada.  

Repare-se, noutro sentido, no conhecido esquete do Monty Phython, de 1972, que é uma brincadeira com invenção, filosofia e futebol. De um lado, os gregos, do outro, os alemães. O trio de arbitragem: Confúcio [com uma ampulheta para marcar o tempo] e Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino como assistentes. O time alemão: Leibniz, Kant, Hegel, Schopenhauer, Schelling, Beckenbauer [presença insuspeita], Jarspers, Schlegel, Wittgenstein, Nietzsche e Heidegger. Marx está no banco de reservas, aquece numa indicação do narrador que vai mudar a história do jogo; entra, e nada muda. O treinador é Lutero. O lado grego: Platão, Epicteto, Sófocles, Empédocles, Plotino, Epicuro, Heráclito, Demócrito, Sócrates e Arquimedes, que tem a brilhante ideia de chutar a bola [retirá-la do centro, desfazer a nódoa da centralidade e arejar, deixar o centro disponível] e convida seus companheiros a fazer o mesmo até que marcam um gol. O futebol aparece como alumbramento e pulsão, força e experiência e caráter de invenção radical quando o corpo se lança ao método furioso e sofisticado do pensamento. Vale também para a literatura.  

Assim, a questão mais recente passa, furiosamente [lembrem-se de Dante: o poeta tem que ser perigoso], pela presença do filósofo português Manuel Sérgio e seu pensamento em torno da psicomotricidade humana, filosofia e futebol, e um sem número de treinadores que perseguem suas lições: de José Mourinho a Jorge Jesus, exemplos. Este último, praticamente recém-chegado ao Brasil, reformula toda uma expectativa entre futebol e pensamento, ou seja, estudo, o que a maioria de nossos treinadores e jogadores desconhece e, reparem, para os que dirigem e ganham dinheiro com o futebol é importante que desconheçam. Jorge Jesus nos traz de volta dois grandes problemas, perenes e imensamente aparentes, que regem a todos os lados a estrutura social do futebol: alienação e luta de classes. Por isso refuta-se tanto, com maledicência corporativa e preconceituosa, o que ele apresenta a cada entrevista e, principalmente, a cada jogo: pensamento de jogo, quando nem se precisa da bola, time sem centro, logo sem estrutura de controle e poder. E ainda, entendimento do campo, expansão do sentido humano e atribuição de perspectiva comum ao que cada um pode ser, ontologia e singularidade, numa dimensão coletiva. E é aí, nessa abrangência, que a ideia do estudo comparece como um esforço alargado; como sugere o filósofo italiano Giorgio Agamben: estudo tem a ver com espanto [studiare, stupire], porque é interminável, uma vagabundagem de longas horas entre os livros e o mundo e não tem finalidade alguma. É um misto de estupefação e lucidez, descoberta e perda, paixão e ação.  

Manuel Sérgio, atente-se, declara que “o futebol, como qualquer outra modalidade desportiva, é uma das formas da motricidade humana – como é lógico! – embora a pretensa cientificidade de muitos comentadores do futebol seja proporcional à sua desumanidade, quero dizer: quanto mais falam de futebol menos humano se revela o seu discurso.” Depois, avança e aponta que “aconselharia aos agentes do futebol uma severa autocrítica (à boa maneira socrática: só sei que nada sei): um corte epistemológico, em relação à pré-ciência de um senso comum que analisa o futebol, sem descontinuidade, nos problemas e na linguagem. O curso de um conhecimento verdadeiramente científico não é linear, o seu grande objetivo é respeitar o Passado, mas construir o Futuro, o que implica pôr de lado e rejeitar muito do que a tradição nos oferece. Enfim, ruptura.” E confirma: “não há remates, há pessoas que rematam; não há fintas, há pessoas que fintam. Se não conhecer as pessoas, não percebo as fintas. Isto é uma revolução. Depois não sou convidado para nada, porque não vendo. O que é preciso é os gajos “ah você é isto, você é aquilo” e é uma vergonha, passa-se duas horas nisto. Algo está podre no reino da Dinamarca. É que aquilo nem futebol é. Mas dá dinheiro. É o nosso tempo e isso reflete-se no futebol. Costumo dizer também: o desporto reproduz e multiplica as taras da sociedade capitalista. A mania do rendimento, do recorde, da medida, da alta competição. Isto é tudo típico da economia capitalista.” 

Tantas vezes, a literatura ao nosso redor é apenas pobrinha também e adequada à mercadoria, o capitalismo é um parasita indômito: produto de maledicentes, corporativa, mímica, unânime, filiada, fadada a contragolpes ao poder – este contrassenso, porque não há outro poder, apenas um mesmo – que é o que se deseja em lances típicos da economia capitalista etc. Em que pese a dança do jogo, se lembramos de João Cabral e Ricardo Aleixo, que jogaram bola, e são poetas incrivelmente incansáveis; ou de Belchior, o índio, que apreciava tanto Albert Camus, o goleiro, e lhe dedicou a linha “estava mais angustiado que o goleiro na hora do gol”; ou Gonçalo Tavares, que jogou no time juvenil do Beira Mar, de Aveiro, e que tem formação em educação física e é professor no mesmo curso, o de Psicomotricidade Humana, e na mesma universidade de Manuel Sérgio, a Universidade Técnica de Lisboa, com a elaboração constante da literatura como dança, movimento e filosofia. Depois, rastreando, algo mais ali e algo mais acolá. O que assusta aos que detêm poder é que recupere-se toda a dimensão política do prazer, que é sempre livre e potente: a vida das ervilhas. O poder repousa quando isola e anula a potência em relação a seu ato: a revolta. Jorge Jesus, simplesmente, tem tanto a nos dizer sobre literatura e política quanto sobre futebol, porque esforça-se imparável ao pensamento.  

Coluna Trabalhos no Subsolo, por Manoel Ricardo de Lima.

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPG-MS, UNIRIO. Publicou Pasolini: retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa), Avião de Alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015), entre outros. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios (Lumme Editor).

Publicado na Revestrés#44 – novembro-dezembro de 2019.

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