É interessante perceber que, dentre os números alarmantes de feminicídio nos mais diferentes países, o termo – misoginia – nunca aparece como pano de fundo, se não para justificar, pelo menos para trazer à tona a maldade que cerca os homens misóginos. Há quem acredite que a expressão – feminicídio – advém do termo generocídio, ou seja, assassinato massivo de determinado tipo de gênero sexual. Historicamente, no entanto, o termo foi adotado pela primeira vez, nos anos 70 (século XX), por Diana E. H Russell, que usou o vocábulo feminicídio ou femicidei, durante sua fala no Tribunal Internacional De Crimes Contra As Mulheres, em Bruxelas, Bélgica. Trata-se de socióloga, nascida e criada na Cidade do Cabo, África do Sul, e, hoje, residente nos Estados Unidos, a qual vem lutando ao longo de mais de duas décadas contra a violência sexual sofrida por meninas, adolescentes e mulheres.
No caso da misoginia, de origem grega, o termo misogunía (prefixo miseó = ódio + gyné = mulher), literalmente, significa horror, ódio e aversão ao gênero feminino. E embora não apareça nas matérias policiais ou nos jornais televisivos, comprovadamente, estudos de diferentes naturezas atestam que essa repulsa mórbida e patológica mantém relação direta com a violência praticada contra a mulher, no decorrer de séculos e décadas.
Sem chegar ao extremo, revela-se em forma de agressões psicológicas e físicas, incluindo mutilações, objetificação sexual, desprezo, torturas, perseguições, piadas, pornografia, violência doméstica e até estupro. E o mais preocupante, países não desenvolvidos ou em desenvolvimento, como o nosso, mantêm traços culturais e sociais de misoginia mais visíveis e fortes em decorrência do sistema educacional, em sua essência, ainda precário, o que resulta em mais casos de tratamento degradante contra a mulher.
A retórica misógina expande-se em passos de gigante. O alvo são mulheres visíveis na esfera pública em qualquer segmento.
A misoginia situa-se na esfera ampla da misantropia, concebida como horror ao ser humano ou à humanidade como um todo, de modo que incorpora diferentes modalidades de preconceitos ora existentes, como a homofobia e a xenofobia. No caso, a misoginia reside no conceito da superioridade de gênero, instituído pelo patriarcado no decorrer dos anos, ao tempo em que o sexismo retroalimenta a desvalorização da mulher, não obstante os decantados e reais desafios vencidos pela mulher, no mercado de trabalho, nas universidades, no campo das artes, da ciência e da tecnologia.
Mas, a bem da verdade, há mulheres que odeiam o homem e praticam de forma exacerbada o que se chama misandria. Também do grego, misosandrosia reúne as partículas misos (ódio) e andros, que significa homem, e quiçá, represente uma forma inadequada de defesa das mulheres vítimas de misóginos. De qualquer forma, conviver com misóginos é um susto (porque inesperado) e uma tortura constante. Eles agem como conta-gotas. Incessantemente, de forma sutil, lenta e permanente. Trapaceiam nas coisas mais simples. Escondem objetos. O açúcar some para seu café. Colocam mensagens curtas e acusatórias em qualquer lugar da casa. Jogam fora tampas de garrafas de seu uso corriqueiro. Um dos pés de sapatilha desaparecido misteriosamente aparece no depósito de lixo. Não lhe chama ao telefone se alguém lhe busca. Somem com documentos. Rasgam papéis que não lhe pertencem. E, “de quebra”, se portam como verdadeiros cão de guarda, à espreita de algum deslize. Colam no rosto um sorriso, que expressa zombaria e nojo, ao olhar de soslaio para você, e, paradoxalmente, de forma insistente, provocativa e irônica.
Além da mitologia do mundo antigo ser repleta de exemplos misóginos, pensadores que atravessaram os séculos aparecem como misóginos em potencial. Numerosos filósofos ocidentais influentes são considerados misóginos, cada qual com suas particularidades. Entre eles, estão Aristóteles, Sócrates, René Descartes, Thomas Hobbes, John Locke, David Hume, Jean-Jacques Rousseau, G. W. F. Hegel, Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Charles Darwin e Sigmund Freud. Por exemplo, o pensador grego Aristóteles definia as mulheres como “homens imperfeitos” em consonância com Sócrates, filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga, para quem um dos mais graves sinais de fracasso moral da democracia é a igualdade sexual que tende a promover. São considerações que visam tão somente retomar que essas deformidades de caráter, consideradas pela literatura grega como graves enfermidades, não pertencem à contemporaneidade, com a ressalva de que o culto da misoginia parece derivar do medo que o homem sente frente à mulher, sentimento este nomeado como ginofobia.
E mais, a misoginia subjaz a preceitos, às vezes, implícitos de algumas religiões. Por exemplo, para Bernard Faure, Columbia University (New York, Estados Unidos), o budismo não é tão igualitário como pretende se mostrar, haja vista que exalta à exaustão seus monges, relegando a importância de mães e mulheres. O próprio cristianismo desperta polêmicas sucessivas em torno ao tratamento imposto à mulher quanto à submissão. A este respeito, a psicóloga norte-americana, Margaret J. Rinck, autora do interessante livro “Christian men who hate women” (“Homens cristãos que odeiam mulheres”), explica que a cultura social cristã parece insinuar o uso indevido misógino do ideal bíblico de submissão, mas se trata, de fato, de séria distorção. A doutrina cristã trata de uma relação onde paira a submissão mútua, onde o amor se fundamenta em respeito profundo e mútuo como princípio norteador da união.
O islamismo é, sim, uma religião essencialmente misógina e que requer estudo à parte… E há, ainda, as contradições na esfera do sikhismo. Trata-se de religião monoteísta, século XV, que resulta do sincretismo de elementos do hinduísmo, islamismo e sufismo, quando criada em Punjab (Estado do noroeste da Índia) por Guru Nanak, o qual sempre lutou em prol da mulher em oposição a alguns adeptos contemporâneos. Há muitos outros exemplos e modelos de misoginia escancarada ou encoberta em religiões e ideologias…
Em tempos virtuais, a retórica misógina expande-se em passos de gigante. O alvo são mulheres visíveis na esfera pública em qualquer segmento, incluindo as que estão associadas ao feminismo ou aos ganhos da mulher feminista nos diferentes segmentos da esfera social. O aspecto positivo é que a internet e suas potencialidades favorecem a luta acirrada da mulher contra a cultura misógina, embora continuemos a acreditar que a misoginia decorre de estruturas sociais patriarcais, deixando para trás o termo quase desconhecido – filoginia – advindo do grego (prefixo philo = amor + gyné = mulher), que nomeia amor, afeto e respeito pelo sexo feminino.
Entretanto, não existe comprovação de que o feminicídio, em seu conceito mais amplo que nomeia a perseguição e o assassinato de pessoas do sexo feminino, classificado, hoje, como crime hediondo no Brasil, nem sempre é praticado por misóginos. Aliás, o Brasil demorou muito a legislar sobre a temática tão cruel em si mesma. Somente em 9 de março de 2015, graças à promulgação da Lei n. 13.104, com a alteração do Artigo n. 121 do Decreto-Lei n. 2.848, 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, o feminicídio passou a ser previsto como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o Artigo 1º da Lei n. 8.072, 25 de julho de 1990, inclui, agora, o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
No entanto, como sempre reafirmamos, sob o olhar crítico de legisladores e juristas, leis per se não asseguram a mudança comportamental dos indivíduos. Se leis, decretos-leis, regimentos, códigos, etc. etc. são essenciais para orientar a vida em sociedade, seu registro e sua promulgação, sem acompanhamento rígido, não garantem observância. Até porque, para se ter conduta irrepreensível como cidadão, necessitamos de rédeas e freios. Afinal, como diz Giseppe Mazzini, “não existindo uma lei santa, inviolável, não criada pelos homens, que norma teremos para julgar se um ato é ou não justo [repreensível ou irrepreensível; aceitável ou aviltante?]” No caso do Brasil, temos leis em profusão; cumprimento, de menos.
Por fim, reiteramos nosso pensamento: os misóginos não são melhores do que os feminicidas. Se não matam, exaurem a mulher no que ela tem de mais precioso – sua dignidade como ser humano!
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Maria das Graças Targino é Doutora em Ciências da Informação pela UnB (Universidade de Brasília) e jornalista. Possui pós-doutorado pela Universidade de Salamanca, Espanha. Tem artigos e livros em Ciência da Informação e Comunicação, enveredando pela literatura como cronista. Depois da vinculação com a UFPI por 30 anos, hoje é docente de pós-graduação em Ciência da Informação pela UFPB. Mantém coluna semanal de informação no jornal O Dia, de Teresina.
Publicado na Revestrés#43 – setembro-outubro 2019.
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