Não só palavras podem ser lidas e decifradas. Casas, ruas, edifícios, árvores, fatos, pessoas também podem. E devem. Era preciso ler o prédio moderno do mercado. O que era aquilo? Fez esta e outras perguntas para si mesmo e para ninguém, enquanto a mente funcionava a mil. Por que sofrer por essas coisas? Não era melhor agir como os outros: não pensar, não analisar, não fazer perguntas?
A brisa da manhã soprava de leve. O sol subia no céu, fustigava os viventes. O esgoto em que se transformou o pequeno rio que deu nome à cidade estava mais feio que de costume. Era preciso transpor a ponte e sair dali. Pegar um caminho de chão e andar sem olhar para trás. Fugir e pensar em outras coisas.
Era o que estava ruminando no segundo dia da greve dos caminhoneiros, quando o acaso o fez reencontrar um amigo de infância (amigo é modo de dizer, haviam estudado juntos, nada mais os unia, a não ser a inocência do passado). Não pensou duas vezes em aceitar o convite feito de supetão: vamos para a velha cidade dos nossos pais e avós? Tenho gasolina pra ir, só não dá pra voltar, depois dá-se um jeito…
Botou algumas roupas na mochila e uns livros. Não sabia viver sem eles. Na estrada, a fila de caminhões parados. Perto de Regeneração, um incêndio de pneus velhos, a fumaça preta subindo rapidamente. O rádio do carro dava notícias a toda hora. O País estava parado, faltava gás de cozinha e remédios para doentes nos hospitais. O repórter falava em desabastecimento. O governo não aceitava as reivindicações, estava difícil negociar. Mais alguns dias, as cidades virariam caos…
O que havia era medo, pessoas agitadas nos supermercados atrás de comida. Enquanto o rádio transmitia notícias e o amigo gesticulava e falava sem parar, pensou no nosso precário equilíbrio, na dependência, na vida por um fio. Tudo estava perdido, meu Deus! Como se poderia criar uma sociedade diferente, outra economia, outra política, outros valores? Outras pessoas, sim, outras pessoas, nós. Devíamos mudar a vida mesquinha que temos vivido.
Lembrou as aulas de sociologia no passado nem tão distante. O professor, marxista doente, continuava vivo, tinha um blog, soltava farpas e artigos. Aposentado, numa foto com os netos, escreveu a legenda: não há revolução sem amor.
O professor, marxista doente, continuava vivo, tinha um blog, soltava farpas e artigos. Aposentado, numa foto com os netos, escreveu a legenda: não há revolução sem amor.
A vantagem de uma cidade pequena é que torna fácil ver tudo de forma mais clara. Estou falando das relações de dominação, seu babaca, teve vontade de dizer pro amigo, que sacou de uma latinha de cerveja e falava mais inflamado um discurso disparatado, atirando em todas as direções. Sim, uma cidade pequena é uma miniatura do Brasil, disse, enquanto o automóvel penetrava nas entranhas da tarde.
Caminhando na estradinha ladeada de árvores altas, suspirou aliviado. Ali estava sua revolução: o céu azul de nuvens brancas; o sol, filtrado na folhagem, esplendor de ouro. A dois ou três quilômetros, a cidade, perdida em devaneios e culpas. O País também estava perto dali, ou melhor, era ali, porém livre de mentiras e outras misérias. Será que havia dois mundos, o da civilização e o da natureza? A sociedade podia se contorcer em pecados e aflições, mas a terra continuava girando em torno do seu eixo, o sol brilhando sobre os planetas, o vento farejando sua face. Tudo que estava acontecendo eram ondas na superfície. O mar profundo permanecia com seus mistérios e sua poesia.
Mas teria que voltar. Aquilo era só uma trégua. Seu lugar, mesmo sofrendo, era entre os seus. Já havia pensado em largar tudo e viver numa ecovila. Tinha visitado algumas. Por pouco não ficou. Mas algo mais forte o chamou para aquela vida besta, meu Deus! Tinha que lutar todos os dias e participar da vida política, ser um ativista a seu modo. Mas como era difícil! Como o ser humano é estranho!
Depois de passar muito tempo deitado sobre as pedras, na sombra das árvores, ouvindo os pássaros, sentiu-se revigorado e pronto para pegar o caminho de volta. Que lhe importava sua vida senão dissolvê-la, entregar-se por completo ao fluxo ininterrupto que não sabe onde vai dar? Com todos os diabos, venha a greve dos caminhoneiros e outras mais! Estará sempre atento e pronto para sofrer. A sociedade não vai mudar tão facilmente. Mais dia menos dia, um ano valerá cem. Caminharemos pelas ruas desviando-nos dos cadáveres?
(Publicada na Revestrés#36 – maio-junho de 2018)