O que tem essa rua para me atrair tanto? Enigmas e sordidez sob os escombros? Ou nada disso, apenas a busca por algum alento, quem sabe o desconhecido oculto nos casarões arruinados?
De costas para o prédio amarelo da Associação Comercial, piso o calçamento de pedra onde responde minhas perguntas um flanelinha, com mais idade e gentileza que os que habitualmente exercem essa profissão. Da frente de um sobrado corroído, no começo da rua, vê-se a torre de São Bento acima dos telhados. Há casas fechadas, lixo na calçada e matinho verde entre as rachaduras. A rua arranca sustos da alma.
Depois da Boate Skala, a sombra da amendoeira convida para descansar um pouco e apreciar o cruzamento com a Rua Henrique Siqueira, o sobrado pintado de verde claro e branco e a oficina de estofados. Os carros passam apressados, deixando a mim e a rua entregues ao destino da tarde que mal se iniciara. Parece que estamos numa rua e numa cidade perdidas. De novo, só uns poucos casarões pintados e o uniforme da oficial da polícia, que cruza o estacionamento com o cabelo molhado.
Sentado em frente a uma loja de material elétrico, única edificação não mergulhada em sombras naquele pedaço de via, um homem negro, pobremente vestido, espera. Os chinelos de borracha são gastos, as unhas sujas por cortar, e ele carrega no bolso da camisa pedaços de papéis, uma cadernetinha e uma caneta. Tão cheio está o bolso que parece um peso excessivo. Cabelos brancos vazam do boné. Está esperando alguém que lhe prometeu serviço. É serralheiro. Chegou na cidade em 1967, procedente de Sapé. Não tem futuro trabalhar para os outros, diz. Vem um homem pela calçada caminhando com dificuldade, apoiando-se no bastão. Uma mãe jovem passa logo depois com uma criança negra nos braços, o semblante carregado.
Logo a seguir, um bordel e um depósito de produtos de limpeza, de onde exala um cheiro que, bem ou mal, renova a rua. Aí é preciso parar porque estamos diante do Beco dos Milagres. Na esquina, o pé de urucu, carregado de frutos e flores, convida o olhar para se demorar no enigma ou na ironia daquele nome e nas casas pobres encostadas umas às outras, enquanto o vento rasteiro levanta pequena nuvem de pó sob o sol ardente.
Na rua deserta, um casal de pombos procura o que comer. Numa casa decadente, entre tantas que há ali, o aviso desbotado: proibida entrada de menores de 18 anos. E na placa tosca, no que outrora fora a porta de entrada do casarão arruinado, Amor Ti Amo. Na Ladeira da Borborema, veem-se as torres da catedral, que assomam dos telhados e das árvores, e, no sentido oposto, a da Igreja São Frei Pedro Gonçalves, pontiaguda, furando o céu. Em frente à oficina de geladeiras, outro homem grisalho espera. De repente, o ar é atravessado por um bolero que vem do Bar e Dormitório Sorriso, quase em frente à Casa do Estudante.
É o início da ladeira, depois das oficinas, do pensionato e pousada, do Sindicato dos Jornalistas e dos Alcoólicos Anônimos. Prostitutas jovens e negras estão na calçada. Duas delas resolvem caminhar até o viaduto debaixo do qual há uma sinuca, e um rapaz ouve música em alto volume. Uma delas está com um vestido preto colante ao corpo magro. Requebra-se ao som de um rap. A outra traja short jeans desfiado. Voltam logo em seguida em conversa banal entre sorrisos.
O viaduto parece uma asa imóvel e suja pronto para desferir o golpe de misericórdia e sepultar a rua, que o recebe como um colar de pérolas. Quem vai dar importância àquela via sórdida, que mal aparece nos livros de história e está fora dos roteiros turísticos da cidade, que se comprazem em ostentar os edifícios da orla e o mar? Outro é o destino da Rua da Areia: desagua sua ânsia na praça onde árvores altas ensombram e há venda de flores e fotógrafos lambe-lambe, sob o olhar republicano de Aristides Lobo, petrificado no passeio de globos elétricos quebrados.
Bem na esquina, no topo da ladeira, um casarão bonito, pintado de amarelo e branco, é uma loja de móveis. Vagabundo ouve música com fone de ouvido, deitado sobre o balaústre. Um louco imundo, de nariz adunco, carrega coisas na cabeça. E a brisa que vem do mar acaricia da mesma forma a glória e a miséria, espalhando o cheiro de merda, próximo aos grafites entranhados no muro.
Agora, perto de um homem triste e sua venda de balas, chicletes e cigarros, a prostituta de vestido negro colante. A voz melíflua conversa com o desconhecido, tendo a separar-lhes a grade de ferro da porta, que está aberta. Você tem coragem, ele diz, por entre as frestas dos olhos. Todos somos corajosas! – a frase põe fim ao diálogo e parece ser a única luz que emerge das ruínas.
Para o fundo da rua convergem as águas, descendo pelas ladeiras, levando o que encontram sobre as pedras escuras. Nos primórdios, a chuva depositava areia ao longo do seu leito. Hoje não há areia branca, só o negro palpitar sujo e barato dos poemas sórdidos, que sangram e abrem seus reservatórios muito além do necessário, moendo as entranhas.
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Rogério Newton é poeta, cronista, romancista. Publicou Ruínas da Memória (1994), Pescadores da Tribo (2001), Último Round (2003), Conversa escrita n´água (2006), Grão (2011), No coração da noite estrelada (2015) e Crônicas dos enigmas de Oeiras (2017).
Sóter Carreiro é arquiteto e aquarelista, atua nas artes plásticas há mais de 20 anos. Estudou no MAC (Museu de Arte Contemporânea) de Pernambuco. Ilustrou livros, catálogos e agendas. Fez exposições no Brasil e exterior. É co-autor de Crônicas dos enigmas de Oeiras (2017).
Esse texto faz parte da Revestrés#45 (2020), que pode ser baixada ou lida gratuitamente CLIQUE BAIXE O PDF (link para pdf) OU LEIA ONLINE (link issuu).
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