Fui levado por Emanuel Vital à casa de Luzia Josefa da Conceição. No Rosário, todos a conhecem por Dona Luzia. Mora em um pequeno largo, dos muitos que o bairro possui. A casa é um pouco recuada. Na frente, a sombra da trepadeira convida para se ficar conversando, esquecido do tempo.
Por causa da chuva fina, recebeu-nos na sala, onde se vê, sobre pequena mesa nua, a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Sentado na cadeira, olhei o teto baixo, de telhas e caibros finos, e as paredes. Logo fomos cativados pela verdade daquela mulher.
Do interior de Itainópolis trouxe as lembranças do trabalho na roça e do curral às quatro horas da madrugada. A mãe acabou-se cedo. O pai morreu no mato “coisado do juízo”. Cepo Véi, que lhe criava, mandou-a pra Oeiras, onde estava “seu povo”, no tempo da festa de Bom Jesus dos Passos. “Cheguei aqui novinha e me soltei”. A gargalhada enche a casa. “Cai na gandaia e depois tive dois filhos, Chico Preto e Gilson”.
Um dos seus lugares preferidos era a Casa da Pólvora, não por nada histórico, mas porque havia forró de negro. Branco não ia lá, não. Nomes vão surgindo no desfiar da memória: Leocádio Amâncio, Severo, Maria Rejeito, Venâncio, Zé Perdido, Outeiro, Barro Alto, Lajeiro do Samba… Havia um batuque pra Santa Bárbara. Tenta lembrar a melodia, mas lhe escapa.
Fala sobre as ruínas da Cadeia Velha. “Diz que embaixo se botava sal pros negros”. E outras lembranças dos tempos de perversidades, que ela foi ouvindo: “Do Barro Alto prá cá, de junto do matadouro, tem um cajueiro e diz que tinha uma forca pros negros…” Onde ficava o cemitério ela não sabe ou não lembra, mas devia ser ali mesmo, perto do matadouro velho, onde muitas vítimas da gripe espanhola foram enterradas, isso sei de outra fonte.
Não saíram da memória os trabalhadores das olarias, como Venâncio e Albino, os Congos de Tiborão, os tiradores de Reis, como seu Quelé, das leseiras e rodas de São Gonçalo. Do interior vinham as pessoas para a feira, montadas em jumentos. Traziam arroz, feijão, tapioca, milho, rapadura… Os habitantes do Rosário, para buscar água, desciam ao Mocha e voltavam com potes e latas na cabeça. O riacho ficava cheio de lavadeiras. Um dia alguém a salvou do afogamento. Viu um homem lutar contra a sucuiuiú.
Cozinheira de mão boa, trabalhou “para os brancos”. Começou numa “casona velha”, perto dos Correios. Servia café para os jogadores até tarde da noite. Um dia, voltando para casa, alguém puxou-lhe uma faca. Escapou pelo beco de Seu Hipólito.
A senhora nunca estudou? “Nunca tive essa ‘purtunidade’. Sabe por quê? Fui andando, bolando pelas casas dos outros. O povo deles botava na escola, e eu era pra enxada, o machado, a foice, o pilão, a madeira pra encostar nas cercas… Outra coisa não me botaram, negócio de escola, não”.
Tempo de carnaval da raça que descia do Rosário, suada, batendo tambores, era convidada e desfilava como baiana, cheia de saracoteios. O grupo parava na praça. Ela dava show.
Havia terreiros, mas não gostava de “baiar”. Devota de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora da Conceição. A Conceição ficava cheia, gente do lado de fora. No Rosário tinha Bom Jesus, São Benedito, São Sebastião, Nossa Senhora do Rosário…
No Natal, mulheres vem rezar em sua casa. Outro dia chegou um povo de outra igreja: “A senhora sabe quem é Jesus? Eu disse: “É nosso pai eterno e nosso irmão”. A pessoa falou: “O nome dele é Jeová”. Eu disse: “Esse nome é de outra igreja. Os meus são Nossa Senhora da Conceição, Bom Jesus, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Vitória, São Francisco…
Em alguns momentos, parecia ter perdido o fio da narrativa, mas nunca o bom humor. Finda a gravação, disse para Emanuel Vital: “Chame o homem pra conhecer o ‘terraço show’ da velha!”
Levou-nos para o quintal de terra e cerca de arame, onde passa boa parte do dia, entre o umbuzeiro e a pequena plantação de milho. Ali também constrói artesanatos, usando sacos de feira e retalhos de pano. Satisfeita com nossa visita, presenteou-nos com tapetes coloridos. Foi difícil sair dali, pois os assuntos pareciam não ter fim para ela nem para nós, impressionados com sua extraordinária vitalidade.
Antes de nos despedir, já na calçada, tivemos mais dedos de prosa. Sentou-se relaxadamente sobre o batente. Só aí percebemos a placa no alto da parede: Travessa Santa Luzia.
Naquele pedaço humílimo de rua, a mais antiga moradora do Rosário quer continuar a viver, nem que seja gemendo e chorando. A gargalhada enche a rua. A morte é sua madrinha de São João.
(Publicada na Revestrés#27 – outubro/novembro 2016)