Quando ouvi pela primeira vez Caetano Veloso dizer, na letra de Sampa (1978), que “Narciso acha feio o que não é espelho”, sabia que estava diante de uma bela tradução poética do mito de Narciso e do correlato termo psicanalítico (Narcisismo) cunhado por Sigmund Freud em 1914. Entretanto, somente anos depois é que percebi que a força dos versos do compositor tropicalista residia na sua atualidade: ver-se e, agora, dar-se a ver jamais foi tão simples e banal como na era das redes virtuais de relacionamento.
Sobretudo em época de altíssima visibilidade midiática como a de hoje, o tema desnudado por Caetano se revela sintomático de novas formas de sociabilidade e de construção de identidades e subjetividades. Parece que não há vida para além da(s) tela(s) e dos registros ou arquivos informáticos e informacionais e fora dos circuitos em que se manifesta uma suposta comunicação em rede virtual. É como se o estatuto ontológico das sociedades pós-modernas residisse na possibilidade de ver e ser visto: para ser na sociedade atual é preciso ter uma imagem visível – e celebrada, diga-se de passagem. Nesse processo regido pela performance individual, a identidade é substituída pela personificação e os imperativos narcísicos do ver e do ser visto se tornam mais importantes do que a interação com a alteridade, tão cara à construção da subjetividade e alcançada apenas em função de acontecimentos comunicacionais.
Sobram imagens pessoais por todo lado: escolas, centros de treinamento e faculdades estampam em out-door as fotos das equipes de professores e dos alunos que obtiveram êxito nos concursos; blogs e fotologs proliferam na internet, expondo, sem guardar segredo (ao contrário do que faziam os antigos diários pessoais), a intimidade de seus proprietários; vídeos pessoais são postados a cada minuto no Youtube e aproveitados pelos canais de televisão; pequenos acontecimentos pessoais são transformados em grandes eventos coletivos nas redes virtuais de relacionamento; colunas sociais de jornais impressos registram e cultuam a boa aparência dos colunáveis em fotografias posadas…
A visibilidade que as tecnologias midiáticas conferem a acontecimentos, relações e atores sociais expõe a formação de um novo sujeito, que procura se identificar com cada nova imagem registrada pelas ferramentas de mídia e exposta nas telas, displays e dispositivos. A auto-referência se torna assim um dado singular da cultura midiática, e o narcisismo que essa prática exageradamente redundante comporta é de natureza neurótica, para relembrar Freud. Resultam desse processo patológico (quase psicótico, ainda segundo Freud) alguns comportamentos profissionais. Alguns jornalistas, só para citar um exemplo, falam mais de si mesmos do que sobre os temas e assuntos que abordam nos seus programas, construindo um jornalismo de auto-referenciação em que o grande espetáculo é o próprio jornalista, que se refaz a cada dia em busca incessante por uma imagem ideal (ideal do eu, no jargão psicanalítico?).
A identificação com uma imagem ideal refletida no ‘espelho midiático’ é, portanto, uma cilada, porque quase sempre as incontáveis imagens ali construídas não pertencem ao – ou não se relacionam com o – sujeito ao qual se dirigem ou ao qual fazem referência. Mais uma vez recorro aos versos (neste caso, de inspiração lacaniana) de Caetano em Sampa para ilustrar a idéia: “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto.” É como se o sujeito se olhasse no espelho e não se reconhecesse. Se a imagem se descola desse sujeito e das suas referências sociais, vira um perigo, porque produz avatares múltiplos e incessantes e porque traduz falsidade e deslealdade para com o público. Em outras palavras: se for facilmente verificável a farsa, o sujeito não pode correr o risco de ser o que não é (talvez essa seja exatamente a grande preocupação de profissionais de marketing que trabalham com imagem corporativa: a imagem da empresa deve corresponder de alguma forma à mesma). Mas muita gente esquece isso. Muita gente esquece que a imagem só se constrói numa relação, só existe em função de um ‘outro’ que está fora do sujeito e que essa alteridade, por seu turno, se internaliza no próprio sujeito via fluxos comunicacionais. É aí que acontece a comunicação, de fato, não como performance ou como medida das informações transmitidas. Comunicação como possibilidade de encontro e de troca, um acontecimento situado num contexto sócio-simbólico pleno de referências comuns, mas também de diferenças, disputas, conflitos e negociações.
Espetacularizada a vida, escancarada a intimidade, performatizada a identidade, confere-se uma estética a cada personagem social, que se esmera em integrar os cenários midiáticos de forma sempre estilizada: espelho, espelho meu, existe alguém mais visível do que eu?
*Gustavo Said é doutor em Comunicação e professor da Ufpi
(Artigo publicado na Revestrés#07 – Março/Abril 2013)