O micro-ônibus lotado partia de Teresina com destino a Poção de Pedras, no Maranhão. Calor escaldante e tumulto eram o cenário daquele trajeto de quase cinco horas de viagem. “Ai, que vida!”, exclamou o então estudante de Comunicação Social Cícero Filho, na viagem até sua cidade natal. A reação divertida dos outros passageiros denunciava que a expressão rendia uma boa ideia. “Peguei meu caderno de anotações e escrevi”, conta o cineasta, dez anos depois do filme mais lembrado do cinema no Piauí.
A cidade fictícia de Poço Fundo, onde se passa o filme, é um retrato bem-humorado do interior do Piauí e Maranhão em período eleitoral: corrupção, troca de favores e compra de votos são o bojo de uma trama de romance que revela comportamentos, hábitos e expressões locais. “Nam, mermã, nam, o Jerod tem carro!”, dizia Mona, personagem de Sara Castro que caiu no gosto popular e é lembrada até hoje pelo famoso bordão.
Filmado nas cidades de Teresina e Amarante, no Piauí, e Esperantinópolis, Poção de Pedras e Timon, no Maranhão, o longa-metragem com 1h30 de duração retrata os desmandos políticos do prefeito Zé Leitão do Rabo Preso, do PMC – Partido Magote dos Cornos, juntamente com a vereadora Xica do Ponte, interpretados por Feliciano Popô e Solange Nolêto. “Uma coruja dessa!”, exclamava o personagem ameaçado pela candidatura da pequena empresária Cleonice, interpretada pela atriz Toinha Catingueiro.
O enredo tem seu clímax quando Cleonice se revolta com a situação de abandono sofrida pelos moradores ludibriados. Entre os acontecimentos, está a morte de uma criança por ter tomado remédio para verme, vencido, fornecido pela vereadora em troca de voto. A curiosidade é que, durante a gravação desta cena, as pessoas que passavam pelo local se solidarizavam, achando se tratar de um velório de verdade.
“É na Cleó / É na Cleó / É na Cleó / É na Cleó / É na Cleó / ó, ó, ó, óóó / É na Cleó que eu vou votar / Pra Poço Fundo ‘mar meió’ ficar”, dizia o jingle da campanha eleitoral da candidata do PVP – Partido das Viúvas Poço-Fundenses. “Até hoje recebo convites para o filme ser exibido como plataforma de conscientização do voto”, conta o cineasta sobre solicitações de órgãos como o TRE – Tribunal Regional Eleitoral. “Se eu fosse regravar o filme, não faria nada diferente. Mesmo com todos os problemas técnicos, é um registro”, diz ele.
Em meados dos anos 2000, longe da popularização de plataformas como a Neftlix, o filme foi assistido por milhões de pessoas, apesar de terem sido produzida apenas 300 cópias originais. Exibido em Teresina e São Luís, o filme reuniu 15 mil pessoas, superando o público de “Harry Potter e a Ordem da Fênix” nos cinemas de Teresina. “Em um só vídeo disponível na internet, a visualização chega a 3 milhões. Certa vez, na Rodoviária de Peritoró, no Maranhão, um ambulante contou ter vendido 400 cópias em um só dia”, conta Cícero sobre ação da pirataria. “Até tribo de índios, próximo a Arame, no Maranhão, já tinha assistido”.
Apesar de ser crime previsto no Código Penal (Lei 10.695 de 2003), a pirataria se encarregou da distribuição do filme, forjando até a continuação do longa-metragem. “A vertente negativa foi não ter obtido lucro nenhum. Por outro lado, foi uma catapulta de lançamento”, diz Cícero Filho sobre seu segundo trabalho. Tendo começado seu envolvimento com audiovisual aos 11 anos na TV Comunitária de seu pai, Cícero gravou diversos filmes experimentais até gravar seu primeiro drama “Entre o Amor e a Razão” (2006).
Lançado em setembro de 2007, “Ai que vida!” reuniu elenco de amadores que renunciou aos seus cachês, figurantes da própria região em que as tomadas foram gravadas e um orçamento que permitiu a realização na base da permuta e da ajuda de custo dos colaboradores. “A questão financeira foi a maior dificuldade. Mesmo os pequenos gastos se tornavam obstáculos. Conseguimos tudo através da boa vontade das pessoas”, diz Virgílio Queiroz, produtor e intérprete do personagem Panelada, motorista e pai da protagonista Charlene, a romântica dançarina interpretada por Irisceli Queiroz – na vida real, também pai e filha.
Enquanto cópias se espalhavam por todo o país, música da trilha sonora fez sucesso no Nordeste na voz da cantora Lili Araújo: “Ai que vida, ai que vida / você é meu chuchuzinho / porque eu te amo / porque eu te quero / porque você é minha vida”. Tema do triângulo amoroso Jerod, Charlene e Valdir, interpretados por Wellington Alencar, Irisceli Queiroz e Rômulo Augusto, a música ganhou até clipe gravado pela banda Bali.
“A situação mais inusitada foi a gravação da cena de nudez”, conta Rômulo Augusto, intérprete do garanhão Valdir, flagrado pelo prefeito com a 1ª dama na cama. Precisando fugir pelado, o personagem improvisa uma roupa, roubando um vestido no varal do vizinho. “Eu nunca tinha feito nada parecido, mas assimilei o personagem”, conta o músico que, na época, trabalhava também como modelo.
Quase 10 anos depois do lançamento, a pesquisa Revestrés/Instituto Amostragem, publicada na 20ª edição da revista, revelou que, entre os 5% dos entrevistados que dizem conhecer algum cineasta piauiense, mais de 33% citam Cícero Filho, conhecido principalmente por este trabalho. “Até hoje é meu cartão de visitas”, reconhece sobre a visibilidade que a produção alcançou, levando-o inclusive, a participar do Programa do Jô, da Rede Globo, como entrevistado.
“Ele fala de um nordestino muito estereotipado nas produções, que não se via nas telas do cinema”, coloca a jornalista e mestra em Antropologia e Arqueologia pela Ufpi, Anna Kelma Gallas. “O filme é o homem do interior que gesticula de uma maneira, que fala de uma maneira e não é nada falso. Por isso a obra se tornou referencial e ganhou notoriedade: por trazer a visão que o homem nordestino tem de si mesmo”, diz Gallas, que assina o roteiro da última produção de Cícero Filho, Flor de Abril (2011).
À época, professora de Cícero, que era estudante e estagiário de Comunicação, Kelma Gallas aponta que os projetos itinerantes realizados para divulgação nas praças e escolas conseguiram democratizar o acesso a um filme produzido de maneira autoral. “Trazendo esse olhar despretensioso e, ao mesmo tempo, muito crítico, o filme criou uma conexão com as pessoas porque elas se viram representadas e se reconheceram. Até hoje, no imaginário do piauiense e do maranhense, é um filme que representa o Nordeste”.
(Matéria publicada em Revestrés#32 – Agosto/Setembro 2017).
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