07 de dezembro de 2025. O Levante Mulheres Vivas aconteceu em várias regiões do Brasil em protesto contra a violência letal e estrutural que ceifa vidas de mulheres. Integrando uma rede de atos que ocorreram em capitais e cidades médias e pequenas por todo o país, o movimento denuncia o crescimento dos casos de feminicídio e cobra respostas do Estado e da sociedade. O Levante mobilizou diversos grupos que colocaram na pauta a criminalização da misoginia como meio de enfrentamento à violência de gênero. Esses protestos são parte de uma articulação nacional que demonstra um alcance amplo que ultrapassa os grandes centros e alcança realidades regionais diversas.
A urgência da mobilização se reflete não só nas ruas, mas também nos espaços cotidianos onde meninas crescem e aprendem. Pesquisas têm mostrado que a violência de gênero começa muito antes da vida adulta, impregnando o ambiente escolar: professores relatam que uma parcela significativa das alunas já foi chamada de termos depreciativos por colegas do sexo masculino, e que tal abuso prejudica diretamente o desempenho e o bem-estar das meninas. Quando meninos internalizam comportamentos machistas desde cedo, isso aprofunda a cultura de objetificação e hostilidade contra meninas e mulheres, criando um ciclo que alimenta tanto as violências simbólicas quanto os crimes mais extremos, como o feminicídio, que em 2025 segue em níveis alarmantes no Brasil.
A violência contra as mulheres cresce, apesar dos avanços legais e do acúmulo de debates públicos nas últimas décadas. Os dados, referentes a 2024, constantes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, evidenciam que as violências não apenas persistem, como se diversificam e intensificam. Em um único ano foram 1.492 vítimas de feminicídio, o maior número desde a promulgação da Lei do Feminicídio, em 2015. Em 2024, diariamente, ao menos quatro mulheres foram assassinadas no Brasil simplesmente por serem mulheres. Ao mesmo tempo, cresceram de forma expressiva as tentativas de feminicídio, revelando um cenário de agravamento do risco de morte e a falência das estratégias preventivas. Para piorar, estamos em um contexto marcado por subnotificação, desigualdades territoriais e falhas institucionais no reconhecimento da motivação de gênero, o que indica que a realidade pode ser ainda mais cruel do que aquela capturada pelas estatísticas oficiais. Quer dizer: os números podem ser ainda mais altos.
Diariamente ao menos quatro mulheres foram assassinadas no Brasil simplesmente por serem mulheres. Ao mesmo tempo, cresceram de forma expressiva as tentativas de feminicídio, revelando um cenário de agravamento do risco de morte e a falência das estratégias preventivas.
Além da violência letal, o cotidiano das mulheres é atravessado por outras agressões que antecedem, anunciam e, muitas vezes, culminam no feminicídio. Em 2024, quase 260 mil mulheres sofreram lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, uma média de 29 agressões por hora, e mais de 1 milhão de chamadas ao 190 foram feitas para denunciar esse tipo de violência. Ameaças, perseguições (stalking) e violência psicológica cresceram, evidenciando que a política pública segue operando de maneira reativa, acionada apenas após a violência já ter se manifestado. Mesmo instrumentos centrais como as Medidas Protetivas de Urgência mostraram-se insuficientes: ao menos 121 mulheres foram assassinadas em 2023 e 2024, sob medida protetiva, enquanto estavam, em tese, sob proteção do Estado. Esse quadro é atravessado por marcadores de raça e geração: a maioria das vítimas de feminicídio são mulheres negras, jovens, mortas dentro de casa por parceiros ou ex-parceiros.
É esse cenário de mortes evitáveis, violências reiteradas e omissão estatal que fundamenta a mobilização “Levante Mulheres Vivas”. Diante das falhas em garantir políticas integradas de prevenção, cuidado e proteção, o movimento emerge como grito coletivo contra a naturalização da violência de gênero. A criminalização da misoginia, sua equiparação ao racismo, parece ser uma medida urgente e necessária para tratar a questão como um problema jurídico, social e institucional, e não apenas como casos isolados de violência. Os dados não falam apenas de estatísticas: denunciam um projeto social que segue tolerando que mulheres sejam ameaçadas, violentadas e mortas. O Levante é a afirmação de que nenhuma dessas violências é natural, privada ou inevitável, todas são construções sociais e, portanto, podem e devem ser interrompidas.
O feminicídio não se limita a mulher assassinada. A violência doméstica ou tentativa de feminicídio deixam filhos, familiares e pessoas próximas feridos, traumatizados ou mortos, não sendo meramente vítimas indiretas, mas partes constitutivas das consequências sociais e emocionais desse crime.
Entender a dimensão dos feminicídios exige reconhecer que os efeitos desses crimes não se limitam à mulher que foi assassinada. Levantamentos recentes destacam dezenas de casos em que violência doméstica extrema ou tentativa de feminicídio deixou filhos, familiares e pessoas próximas feridos, traumatizados ou mortos, não sendo meramente vítimas indiretas, mas partes constitutivas das consequências sociais e emocionais desses atos. Isso evidencia como a ausência de respostas eficazes amplia a devastação das famílias e comunidades, intensificando o sofrimento e as desigualdades já existentes.
Essa realidade é ainda mais dramática quando observamos a situação das mulheres negras, que sofrem violências em maior proporção e com maior intensidade. Estatísticas de segurança pública e estudos sociais mostram que a letalidade por gênero é significativamente maior entre negras em comparação às brancas, refletindo dinâmicas do racismo estrutural que atravessam instituições como saúde, justiça e segurança. Além da violência física mortal, mulheres negras enfrentam discriminações como maior probabilidade de atendimento precário em hospitais, maiores taxas de mortalidade materna e violência obstétrica, assim como vulnerabilidades socioeconômicas profundas que ampliam seus riscos no cotidiano.
E nem adianta tentar minimizar esses disparadores raciais argumentando que a maior incidência de violência entre mulheres negras se deve ao fato de pessoas negras constituírem maioria da população brasileira. Como disse “uma intelectual diferentona”, esse é um argumento racista que instrumentaliza a demografia para justificar desigualdades nocivas. Essa lógica é a mesma que se usa para explicar porque negros e negras são majoritários entre os encarcerados, mas não é aplicada na hora de reconhecer que essa população é drasticamente sub-representada em posições de poder na política, no judiciário, na academia, nas grandes empresas ou em cargos decisórios. O fato de que o Brasil é um país de maioria negra não pode ser usado como pretexto para naturalizar a violência ou a exclusão; e nunca ser lembrado quando se trata de números nas universidades, nos conselhos profissionais, nas lideranças corporativas e na formulação de políticas públicas. Se as mulheres negras são maioria nas estatísticas de violência, por que não se considera natural que elas também sejam maioria entre doutoras, cientistas, ministras e líderes públicas?
Mulheres negras sofrem violências em maior proporção e intensidade. Ainda enfrentam maior probabilidade de atendimento precário em hospitais, maiores taxas de mortalidade materna e violência obstétrica, assim como vulnerabilidades socioeconômicas profundas que ampliam seus riscos no cotidiano.
Sejam meninas, sejam mulheres negras, mulheres em diversas profissões, de qualquer religião; há vários pontos a se considerar, se quisermos pensar sobre os motivos pelos quais o ódio à mulheres é banalizado e até mote de humoristas misóginos.
Ao menos um dos motivos refere-se ao necessário questionamento das tradições culturais enraizadas no ocidente, que historicamente sustentaram uma cultura de ódio e subjugação da mulher. Tome-se como exemplo o mito patriarcal de Eva, a comedora de maçã que conversa com uma cobra e convence o coitado do Adãozinho-tão-pequenininho a pecar, que vem sendo usado para justificar a desvalorização feminina e o padrão de desumanização que sustenta a violência simbólica e física contra a mulher.
Esse imaginário não apenas alimenta a rivalidade entre mulheres, que ficam presas à necessidade de serem vistas como “mulher de verdade”, “mulher boa pra casar” “bela-recatada-e-do-lar”, contra as víboras e amigas de víboras, contra as feiticeiras e seus martelos; como também legitima o controle social sobre os corpos femininos e a impunidade dos agressores. É preciso desconstruir as raízes culturais que colocam o gênero feminino ou em posição de inferioridade ou como inimigas a serem domadas e em qualquer dos casos submetidas a violência permanente.
A violência contra as mulheres se atualiza nas práticas cotidianas, nos gestos “pequenos”, nas falas condescendentes e exigências de paciência feminina. O resultado é conhecido: mulheres exaustas, sobrecarregadas, violentadas, enquanto homens seguem como aprendizes eternos da vida adulta.
Sejam quais forem os motivos que sustentam a morte das mulheres, eles não permanecem apenas no plano simbólico. Eles se atualizam nas práticas cotidianas, nos gestos “pequenos”, nas falas atravessadas de condescendência e nas exigências silenciosas de paciência feminina. Ainda há homens que pedem calma, didatismo, pedagogia emocional, como se as mulheres tivessem a obrigação permanente de explicar, traduzir e suavizar a violência que elas mesmas sofrem. Essa exigência não é inocente: ela é parte do mesmo sistema que naturaliza a desigualdade e desloca a responsabilidade masculina. O resultado é conhecido: mulheres exaustas, sobrecarregadas, violentadas, enquanto homens seguem sendo tratados como aprendizes eternos da vida adulta.
É preciso dizer sem rodeios: se a violência é produzida por homens, são eles que precisam se mobilizar para interrompê-la. Não com discursos abstratos, mas enfrentando condutas machistas arraigadas como as que disfarçam o ódio de piada.
Sob estética do humor, do meme, do “é só brincadeira”, a radicalização de meninos e homens nas redes digitais opera. Conteúdos misóginos também circulam como pertencimento, como refúgio identitário, funcionando como armadilhas para mentes em formação e como pilar para argumentos de infantilóides. A exposição repetida dessensibiliza, corrói a empatia e molda subjetividades que passam a enxergar mulheres como inimigas ou objetos. Não é exagero: é um projeto político de captura afetiva e ideológica que produz efeitos reais sobre corpos reais.
Sob estética do humor, do meme, do “é só brincadeira”, a radicalização de meninos e homens nas redes digitais opera. Conteúdos misóginos também circulam como pertencimento e refúgio identitário. A exposição repetida dessensibiliza e molda subjetividades que passam a enxergar mulheres como inimigas ou objetos.
Esse projeto se articula na chamada machosfera, um ecossistema digital que organiza ressentimentos masculinos contra o feminismo e as pautas de gênero. Rankings de “valor sexual”, hierarquias de masculinidade, teorias conspiratórias e ataques sistemáticos a mulheres e pessoas LGBTQIA+ não são desvios isolados: são estratégias coordenadas de produção de ódio e desinformação. O que parece provocação é método. O que parece piada é pedagogia. E o alvo preferencial são meninos e jovens, especialmente aqueles atravessados por frustrações, solidão e insegurança.
Dentro dessa lógica, a chamada “performance da inutilidade masculina” cumpre papel central. Não se trata de incapacidade individual, mas de um modo aprendido de existir: são homens que dizem não ter jeito com crianças, não entender tarefas domésticas, não saber cozinhar. Desaprenderam a comer a maçã que não plantaram nem colheram e nessa encenação deslocam o trabalho, a responsabilidade e a carga mental para as mulheres, enquanto preservam os privilégios masculinos sejam afetivos ou materiais. Isso é política de desresponsabilização. É escolha.
As mulheres não têm obrigação de educar homens adultos. Não são terapeutas, mães substitutas, empregadas emocionais nem máquinas de manutenção da vida masculina. A falsa incompetência é dominação disfarçada. São mulheres trabalhando como empregadas não remuneradas; apêndices a serviço para que eles nunca levantem um dedo; corpos emprestados para sustentar vontades alheias, mecanismos de manutenção do sistema. Isso não é amor, é exploração. E as novas gerações de mulheres já entenderam isso.
O incômodo precisa aumentar. Homens que se comportam como adultos disfuncionais para seguir sendo sustentados pelo cuidado gratuito de esposas, mães e filhas estão com os dias contados, ainda que não tenham percebido. Mulheres não querem mais servir maçã de bandeja pra engordar marmanjo sentado na “cadeira do papai” enquanto acumulam trabalho, medo e cansaço. A recusa feminina não é crise moral: é resposta política. E ela é irreversível. A violência letal contra as mulheres é uma violência masculina.
Se ainda resta alguma inteligência coletiva, ela passa por homens, sejam heteros ou gays. Entrar na luta das mulheres significa falar com outros homens, romper pactos de silêncio, enfrentar os “brothers” e abandonar a cumplicidade covarde do machismo cotidiano. Mulheres já compreenderam o que está acontecendo. Quem insiste em não entender são os homens. E essa ignorância já não é desculpa, é escolha.
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Jacqueline Lima Dourado é jornalista, professora de Jornalismo da Universidade Federal do Piauí e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, PPGCOM-UFPI. É doutora e pós-doutora em Comunicação, líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Política e Diversidade, COMUM-UFPI/CNPq. Atua como Coordenadora de Comunicação do CIATEN e como Superintendente de Comunicação da Universidade Federal do Piauí.
Flavia Ribeiro Barreto é advogada, pedagoga e artista visual. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí – PPGED/UFPI.
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Fontes:
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025.
Revista AzMina. <As vítimas da violência doméstica que não entram nas estatísticas. Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/as-vitimas-da-violencia-domestica-que-nao-entram-nas-estatisticas/.
Cartilha educativa AzMina. Entenda, reconheça e denuncie violência de gênero facilitada por tecnologias. Disponível em: https://azmina.com.br/wp-content/uploads/2025/11/CARTILHA-EDUCATIVA-NAO-CURTO-NAO-COMPARTILHO-251108.pdf.
Serenas.org. Violência contra a mulher não é normal. Disponível em: https://serenasbr.org/novosite/wp-content/uploads/2025/03/WEB_cartilha-adolescentes.pdf.
Labour, música de Paris Paloma. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H_sSuViPBHs.
Perfil de Bárbara Carine, @uma_intelectual_diferentona
Projeto de Lei 896/2023. Altera a Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989, para incluir os crimes praticados em razão de misoginia. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/156025.