Tive acesso ao livro Notes Toward a Digital Workers’ Inquiry, do Capacitor Collective, que é um grupo de pesquisadores dedicado a investigar as condições de trabalho no universo digital. Eles utilizam o método do inquérito operário para ouvir trabalhadores de tecnologia e plataformas e registrar essas experiências.

Começamos com a troca de e-mails. Primeiro, enviei ao professor Enda Brophy um artigo de Vincent Mosco publicado em um livro meu; depois, compartilhei outro volume que coedito com o próprio Mosco. Falei da nossa experiência e dos contatos gratificantes com Mosco. Em gesto generoso, Enda, pesquisador da Simon Fraser University, em Burnaby, Colúmbia Britânica, retribuiu enviando-me o livro mais recente do Capacitor Collective. Antes de tudo isso, eu já havia lido o artigo em que ele escreve sobre Mosco, um texto profundamente sensível que revela a humanidade e a generosidade intelectual de seu orientador. Para quem tiver interesse, deixo o link abaixo. Agora, retorno ao livro.

Notes Toward a Digital Workers’ Inquiry apresenta uma análise detalhada do trabalho digital contemporâneo, oferecendo uma visão direta do capitalismo de plataformas. Por meio da experiência de profissionais das grandes empresas de tecnologia, a obra demonstra como algoritmos, dados e sistemas automatizados de gestão influenciam o cotidiano, a remuneração e as condições de trabalho de milhões de pessoas em todo o mundo.

Mais do que isso, propõe algo contundente: pesquisa e organização formam um único corpo, e apenas quando trabalhadores investigam suas próprias condições é possível transformar a estrutura de poder que os governa.

O livro, dividido em duas partes, une teoria e prática ao analisar o conceito de inquérito operário digital, inspirado no movimento operário italiano e em epistemologias feministas e negras. Ressalta o impacto das plataformas no trabalho, o papel dos algoritmos e dos dados na exploração global e examina a composição da classe trabalhadora digital e suas formas de resistência.

O livro instiga a discussão sobre a gestão algorítmica como forma de comando e disciplina. A dataficação atua como vetor econômico, enquanto a precarização constitui elemento central da estrutura organizacional do trabalho, e a fragmentação surge como estratégia voltada ao enfraquecimento das formas de solidariedade.

A segunda parte traz onze entrevistas com trabalhadores de empresas como Amazon, Uber, Lyft, Google e Mechanical Turk, além de membros de movimentos operários da China, Canadá, Reino Unido e EUA. As entrevistas funcionam como uma cartografia das lutas nos ambientes digitais. Cada depoimento mostra como trabalhadores investigam o funcionamento interno das plataformas, expõem desigualdades, rompem a opacidade algorítmica e testam formas concretas de enfrentamento, desde a sabotagem silenciosa até o mapeamento colaborativo de gargalos logísticos.

Os temas teóricos que sustentam a obra formam a espinha dorsal de uma crítica crucial ao capitalismo digital. O livro resgata e instiga a discussão sobre a gestão algorítmica como forma de comando e disciplina. A dataficação atua como vetor econômico, enquanto a precarização constitui o elemento central da estrutura organizacional do trabalho, e a fragmentação surge como estratégia voltada ao enfraquecimento das formas de solidariedade. Ao mesmo tempo, aponta caminhos para recompor a classe trabalhadora por meio de novos métodos de pesquisa, plataformas autogeridas, auditorias coletivas e alianças transnacionais.

A era digital, marcada pela automação, vigilância e precarização, também abriga criatividade política e solidariedade renovada. Trabalhadores de diferentes países expõem vulnerabilidades do capital digital e demonstram que a disputa pelo futuro do trabalho depende da produção de conhecimento a partir da experiência vivida.

A obra estabelece diálogo com diversos autores, começando por Antonio Gramsci, cujo pensamento orienta reflexões sobre intelectuais orgânicos e disputas de significado. A análise também incorpora Mario Tronti, que evidencia como as lutas dos trabalhadores impulsionam mudanças no capital. Donna Haraway e Patricia Hill Collins destacam o valor do conhecimento situado, enquanto Nick Srnicek oferece base teórica para compreender as plataformas como formas de acumulação. Pesquisadores como Julie Chen, Alex Rosenblat e Niels van Doorn enriquecem o debate com evidências empíricas sobre vigilância, algoritmos e condições precárias de trabalho.

Vincent Mosco aparece como referência indireta ao longo da obra. Sua crítica ao fetichismo tecnológico sustenta a análise das big techs, enquanto sua valorização do trabalho se evidencia nas entrevistas sobre o labor invisível por trás dos sistemas digitais. A mercantilização dos dados surge na discussão sobre dataficação e poder, e o método une teoria à ação política: investigar e organizar são processos interligados.

O livro revela uma paisagem dura, mas não desanimadora. A era digital, marcada pela automação, vigilância e precarização, também abriga criatividade política, inteligência tática e solidariedade renovada. Em cozinhas corporativas, armazéns logísticos, aplicativos de entrega e plataformas de inteligência artificial, trabalhadores de diferentes países reinventam modos de luta, expõem vulnerabilidades do capital digital e demonstram que a disputa pelo futuro do trabalho depende da produção de conhecimento a partir da experiência vivida.

Notes Toward a Digital Workers’ Inquiry não é um livro sobre trabalho digital, mas um mapa de como trabalhadores resistem, criam e reescrevem o presente em um tempo comandado por algoritmos. O livro confirma que a luta de classes não desapareceu: ela apenas mudou de interface.

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Sobre Mosco: https://cjc.utppublishing.com/doi/full/10.3138/cjc-2024-0031-en

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Jacqueline Lima Dourado é jornalista, professora de Jornalismo da Universidade Federal do Piauí e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, PPGCOM-UFPI. É doutora e pós-doutora em Comunicação, líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Política e Diversidade, COMUM-UFPI/CNPq. Atua como Coordenadora de Comunicação do CIATEN e como Superintendente de Comunicação da Universidade Federal do Piauí.